Gêmeas trans relatam jornada e mudanças 2 anos após cirurgias de redesignação de sexo: 'Libertador'

Eu não gostava de tomar banho por conta do meu órgão genital e hoje eu sinto prazer em tomar banho, relata Mayla

Gêmeas Mayla Phoebe e Sofia Albuquerck — Foto: Leonardo Brauwer/Arquivo pessoal

Mayla e Sofia contam sobre caminho de autoaceitação e início da vida acadêmica. Elas fizeram o procedimento em Blumenau em 2021.

Por Joana Caldas, g1 SC

Gêmeas trans relatam jornada e mudanças 2 anos após cirurgias de redesignação de sexo

As gêmeas transgênero Mayla Phoebe e Sofia Albuquerck, de 21 anos, estão separadas por mais de 2 mil quilômetros. A primeira estuda medicina em Buenos Aires e a segunda, engenharia em Franca, interior de São Paulo. Antes disso, porém, estiveram em uma clínica de Blumenau , no Vale do Itajaí, onde fizeram, juntas, cirurgias de redesignação de sexo.

Dois anos depois, após uma jornada de emoções e descobertas, a fase de acompanhamento chega ao fim. As duas falam em alívio, em liberdade, e até em situações cotidianas que agora trazem pequenos prazeres, como tomar banho.

Ao g1, relataram como foi a jornada no período pós-cirúrgico e sobre a inspiração que se tornaram para outras pessoas, sejam jovens trans ou os pais deles.

"Nesses dois anos, foi literalmente o recomeço de uma nova história, de uma nova pessoa em si. A gente teve que aprender tudo de novo, por conta que era tudo uma coisa nova, inusitada. E o sentimento era de estar liberta, de poder ser quem a gente é e estar livre de todo aquele peso que estava sobre a gente", resume Sofia.

As cirurgias foram feitas em fevereiro de 2021. As gêmeas fizeram o procedimento pela rede particular, mas ele também está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Elas tinham 19 anos na época.

Cerca de duas semanas depois do procedimento, elas tiveram alta. Desde então, há um acompanhamento por parte da clínica, conta Sofia.

"Mandaram mensagem, perguntaram se a gente estava sentindo alguma coisa diferente, de não conforme ao que eles esperam. Perguntaram sobre como a gente se sente esteticamente. E tudo ocorreu superbem, tranquilo, a gente não teve nenhum problema".

Elas se preparam para voltar a Blumenau para a última consulta. Originalmente, as gêmeas são de Tapira, em Minas Gerais.

Alívio e emoção

Mayla conta que, após a cirurgia, há um período de alegria e adaptação.

“Não dá para descrever o sentimento, mas a primeira coisa é alívio que a gente sente. E, depois, é tudo muito incrível quando a gente vai descobrindo como funciona, tem que redescobrir como usar tudo de novo. Você tem que reaprender. Não é igual era antes. Até para poder fazer xixi é muito difícil, tem que aprender".

O alívio também podem ocorrer situações cotidianas.

“Meu primeiro banho, eu chorei. Eu não gostava de tomar banho por conta do meu órgão genital e hoje eu sinto prazer em tomar banho, é uma das coisas que eu amo fazer”, relata Mayla.

Ela conta que, antes da cirurgia, às vezes tomava banho de shorts para esse sentimento descrito por ela, chamado de disforia de gênero.

Sofia complementa, dizendo que também há um período de adaptação na vida sexual.

“A primeira vez que você vai ter uma relação, é supernormal sentir um desconforto, é supernormal dar um sangramento. Porque você sente tudo aquilo que está sentindo pela primeira vez”.

Toda pessoa trans busca a cirurgia de redesignação de sexo?

A cirurgia foi importante para Mayla e Sofia, mas um dos médicos responsáveis pelo procedimento delas, José Carlos Martins Junior, destacou que essa não é a realidade para a maior parte das pessoas transgênero.

“95% mais ou menos da população trans é feliz com seu órgão genital. Cerca de 3% a 5% da população de mulheres trans têm indicação para redesignação sexual", diz ele.

A busca pela cirurgia está relacionada à disforia de gênero, de acordo com o médico. “A disforia de gênero é um estresse, é um mal-estar, é uma tristeza que a mulher trans sente quando ela percebe que a maneira como ela se entende não é a maneira que foi designada a ela no momento do nascimento".

Em 2020 novas regras para a cirurgia de transição de gênero foram aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A resolução amplia o acesso à cirurgia e também ao atendimento básico para transgêneros.

A norma reduziu de 18 para 16 anos a idade mínima para o início de terapias hormonais e define regras para o uso de medicamentos para o bloqueio da puberdade. Procedimentos cirúrgicos envolvendo transição de gênero estão proibidos antes dos 18 anos. Antes era preciso esperar até os 21 anos.

Conselho Federal de Medicina publica novas regras dos procedimentos de transição de gênero

Para Mayla, o acompanhamento com a psicóloga foi um momento relacionado à aceitação.

“Quando eu descobri que eu tinha que ir à psicóloga, eu falei assim ‘mas eu tenho certeza que eu quero fazer a cirurgia. Não é a psicóloga que vai me dizer se eu quero fazer a cirurgia ou não’. Mas nunca foi para ela me ajudar a decidir se eu quero ou não, sempre foi para me ajudar a me aceitar. Porque eu não me aceitava. Eu não suportava a ideia de alguém me perguntar na rua se eu era trans. Não saía de casa, eu ficava isolada".

Sofia completa declarando que a aceitação tem que ficar de dentro. “Às vezes a gente bota isso na cabeça de que a gente tem que parecer mais uma mulher cis, como a população prega", resume. "A gente tem que parar e aceitar o nosso próprio corpo, e não empregar aquilo que a sociedade coloca como objetivo", completa.

"A gente não tem que pegar e falar assim ‘nossa, eu sou uma mulher linda porque fiz feminização facial, porque eu fiz readequação sexual’. Você faz aquilo se você tiver se sentindo incomodada consigo mesma. Você faz aquilo para você ter um psicológico melhor consigo mesma, e não por conta que alguém está pregando aquilo em cima de você", afirma Sofia.

Conselhos para jovens e pais

Com a rara situação de duas irmãs gêmeas que fizeram cirurgias de redesignação sexual no mesmo período, as duas acabaram sendo procuradas por outras pessoas, que pediram conselhos para elas.

“Tiveram muitos pais que mandaram mensagem perguntando como foi para os meus pais. A gente passava o meu site, que a gente deixava para conversar sobre o assunto, e muitas meninas, inclusive novas, de 16, 17 anos me mandaram mensagens perguntando como contar para os pais", diz Mayla.

"Uma mãe que mandou mensagem perguntando ‘como foi para os seus pais, porque até ontem tinha meu filho de 14 anos com barba e agora ele veio dizer que é trans. Como foi para você? Como foi para os seus pais? Posso conversar com os seus pais?’", conta Mayla.

Já os jovens perguntam sobre como foi a experiência das irmãs. "Eles enviam mensagens assim para mim, perguntando como foi a cirurgia, se eu recomendava, como funcionava, o que precisava", diz.

Inclusive, Mayla afirma que já fez até amigos dessa forma.

"Quando cada uma operava, contava para a gente e era muito legal. Uma amiga eu conheci através disso e fiquei muito próxima hoje. Ela operou agora e estou muito feliz por ela".

Procedimento pelo SUS

É a portaria nº 2.836 de dezembro de 2011, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que trata sobre o direito da cirurgia de readequação de sexo e o uso de hormônios. O objetivo é geral da portaria é promover a saúde integral da população LGBT.

Para realizar a cirurgia de readequação de sexo pelo SUS, o acesso inicial é via Unidade Básica de Saúde (UBS). Após esse primeiro contato, é função da rede estadual direcionar essa pessoa para um dos centros de referência habilitados pelo Ministério da Saúde que realizam o procedimento .

No Brasil, cinco hospitais prestam esse serviço de acompanhamento para a população. Nenhum deles fica em Santa Catarina.

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/03/18/gemeas-trans-relatam-jornada-e-mudancas-2-anos-apos-cirurgias-de-redesignacao-de-sexo-libertador.ghtml