Seria possível criar uma vacina contra Covid-19, Sars, Mers e resfriado?

Anticorpos são feitos por células brancas sanguíneas especializadas chamadas de células B

Professora de bioquímica da Universidade de Manchester analisa riscos e possibilidades de um único imunizante contra diferentes tipos de coronavírus

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SHEENA CRUICKSHANK*, PARA O THE CONVERSATION

Seria possível criar uma vacina contra Covid-19, Sars, Mers e resfriado? (Foto: Trust "Tru" Katsande/Unsplash)

O sars-CoV-2 — o vírus que causa a Covid-19 — pertence à família dos betacoronavírus, que causam de um resfriado comum à Mers (que mata cerca de uma em cada três pessoas infectadas). Apesar de gerarem uma grande variedade de sintomas, todos esses vírus compartilham similaridades. Se eles são parecidos o suficiente, uma única vacina poderia prevenir infecções por todos eles? Cientistas certamente têm considerado isso.

Antes de explorarmos essa questão, porém, primeiro precisamos fazer um desvio para a fascinante anatomia dos betacoronavírus. Eles são bolas microscópicas cobertas de espinhos [as chamadas proteínas spike] que encapsulam um núcleo central de material genético. O vírus tem que infectar células para se replicar, e para isso ele precisa primeiro se conectar às células.

Betacoronavírus usam seus espinhos para se prender às células, agarrando-se a alvos específicos chamados receptores. Cientistas de países incluindo os Estados Unidos e a França examinaram esses espinhos e descobriram que eles são feitos de duas peças, ou “domínios”, apelidados de S1 e S2.

Esses domínios dos espinhos ajudam o vírus a se anexar a células de diferentes maneiras. Por exemplo, os vírus que causam Covid-19 e Sars ambos usam uma parte do domínio S1 chamada de domínio ligante do receptor (RBD) para se prender ao receptor da célula hospedeira (ACE2). Mas os vírus que causam resfriados não.

Ao comparar as características dos espinhos de todos os betacoronavírus que causam doenças em humanos, pesquisadores descobriram semelhanças e diferenças entre eles. Enquanto domínios S1 são variáveis entre os vírus da família, os domínios S2 são bem parecidos.

Semelhanças na estrutura de vírus são importantes porque ajudam a confundir nosso sistema imunológico ao responder e combater diferentes tipos de vírus parecidos. Isso acontece porque domínios parecidos terão características parecidas que podem ser detectadas pelos nossos anticorpos.

Anticorpos são feitos por células brancas sanguíneas especializadas chamadas de células B. Elas têm muitas funções em infecções, como ajudar outras células brancas a detectar e matar vírus ou infectar viralmente outras células. Anticorpos também podem impedir vírus de entrarem nas células ao bloquear os receptores celulares, como o ACE2 no caso da Covid-19.

No entanto, por mais poderosos que sejam, anticorpos levam tempo para ser produzidos —  pode demorar de sete a dez dias para começar a produção de anticorpos protetores. Uma vez que as células B sabem quais anticorpos produzir, elas vão lembrar, e se encontrarem a mesma infecção novamente, podem reagir quase instantaneamente e produzir ainda mais anticorpos do que antes. Esse recurso é conhecido como memória imunológica. 

Vacinas funcionam ao tentar criar memória imunológica fornecendo características do vírus que vão acionar a produção natural de anticorpos sem a necessidade de uma infecção completa. Sendo assim, semelhanças estruturais entre os betacoronavírus poderiam ser usadas para produzir vacinas geradoras de anticorpos que reconhecem diferentes vírus dessa família?

Reatividade cruzada

Para resolver esse quebra-cabeça, é necessário ver se os anticorpos podem reconhecer mais de um tipo de vírus, fenômeno conhecido como reatividade cruzada. Testes como esse mostraram que anticorpos para o RBD do domínio S1 na proteína spike que causa Sars apresentaram uma reatividade cruzada com o vírus da Covid-19.

Pesquisadores também descobriram que anticorpos para partes do domínio S2 da proteína spike eram responsivos (embora fracamente) aos outros betacoronavírus em um estudo que ainda não foi revisado por pares. Entretanto, isso não é suficiente para dizer que um alvo é adequado para o desenvolvimento futuro de uma vacina ou droga.

Essas descobertas de potenciais reatividades cruzadas de anticorpos são animadoras porque poderiam abrir portas para novas drogas e vacinas que combatam a Covid-19. Outro produto desses estudos podem ser proteções contra futuros coronavírus que ainda podem aparecer.

Aprimoramento da doença

No entanto, é necessária uma nota de advertência. Embora anticorpos possam ser poderosos aliados na luta contra infecções, eles podem representar sérias ameaças à nossa saúde. O aprimoramento dependente de anticorpo (ADE) é um fenômeno que pode ocorrer quando um anticorpo ligado a um vírus na verdade ajuda o vírus a entrar e infectar as células, incluindo células que ele normalmente não conseguiria infectar, como algumas das células brancas do sangue.

Uma vez que o vírus entra na célula branca, ele a sequestra e efetivamente a transforma num cavalo de Troia. Esse cavalo de Troia permite ao vírus se esconder e vencer a célula, espalhando-se pelo corpo — ampliando e acelerando o desenvolvimento da doença.

O ADE não é conhecido por acontecer na Covid-19, mas tem sido observado em casos de dengue. Ainda há muito que não entendemos sobre ADE, mas a probabilidade parece ser maior quando há uma grande variedade de um mesmo vírus circulando entre a população.

Uma grande pergunta, portanto, é: uma vacina que explore similaridade entre os vírus causadores de resfriados e da Covid-19 poderia aumentar o risco de ADE? A maioria dos estudos sobre vacina de Covid-19 estão focados na região RBD da proteína spike, o que não estimula uma produção intensa de anticorpos reativamente cruzados e, dessa forma, representa menor risco de ADE.

Outra possível ameaça que anticorpos podem causar é a condição conhecida como doença respiratória aumentada associada a vacina (ERD). A ERD ocorre quando um grande número de anticorpos se liga ao vírus, gerando aglomerados de vírus e anticorpos. Esses aglomerados podem bloquear pequenas passagens de ar nos pulmões, com efeitos potencialmente devastadores. Esse risco, embora raro e improvável, enfatiza a necessidade de assegurar que quaisquer novas vacinas e drogas sejam devidamente testadas para segurança antes que sejam amplamente usadas.

Em suma, considerando as perguntas sobre a funcionalidade dos anticorpos de reatividade cruzada e seus potenciais riscos, parece improvável que no futuro próximo exista uma vacina para a Covid-19 que também nos proteja contra Sars, Mers e alguns tipos comuns de resfriado. O que é evidente, por outro lado, é que quanto mais aprendemos sobre como esses vírus evoluem, suas similaridades e diferenças e a forma como nosso sistema imunológico reage, maiores as chances de ganharmos a guerra contra a Covid-19.

Texto traduzido do inglês originalmente publicado no site The Conversation.

*Sheena Cruickshank é professora de ciências bioquímicas na Universidade de Manchester, na Inglaterra.

https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2020/07/seria-possivel-criar-uma-vacina-contra-covid-19-sars-mers-e-resfriado.html