A longevidade dos bisturis: quando um cirurgião deve parar de trabalhar?
Em 2013, Brasil já tinha 25 mil na longevidade dos bisturis.
Longevidade no bisturi: Academia Nacional de Medicina realiza evento para discutir quando um cirurgião deve deixar de operar — Foto: Gary Cassel por Pixabay
Academia Nacional de Medicina promove debate e consenso é de que a sabedoria acumulada e a experiência clínica são um ativo inestimável
Rio de Janeiro
No fim de junho, um encontro especial movimentou a Academia Nacional de Medicina (ANM). Normalmente as discussões se referem a doenças e tratamentos, mas aquela tarde foi toda dedicada a falar dos próprios médicos e de um assunto delicado: a hora de parar. Esse foi o tema do simpósio “Reflexões sobre o cirurgião idoso”. Nos Estados Unidos, o debate segue acalorado há alguns anos e as avaliações para checar se o profissional ainda tem plena capacidade para continuar atuando vêm se tornando mais frequentes. No Brasil, havia 10.800 médicos acima dos 70 anos em 2011; em 2013, eram 25 mil. A longevidade também chegou aos bisturis.
O acadêmico Henrique Murad, que foi chefe do Serviço de Cirurgia Cardíaca do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, por duas décadas, apresentou uma pesquisa, feita com cirurgiões com 65 anos ou mais membros da ANM e da SBCCV (Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular), que serve como termômetro sobre o que pensam esses profissionais. Dos 40 que responderam às perguntas, mais de 80% ainda operam e 50% realizam procedimentos inovadores, como a utilização de robôs em cirurgias, enquanto 47.5% têm alguém na equipe com esse treinamento. Num retrospecto dos últimos dez anos, 62.5% fazem menos cirurgias e 75% dizem que é raro operar à noite. Para 75%, a maior recompensa é o bem-estar do paciente e, diante da pergunta “Por que continuar operando?”, 62.5% dizem que o fato de se sentirem úteis é a maior motivação, ao passo que 45% alegam necessidade financeira. Sobre quando pretendem parar, 30% dizem que nunca e, 47.5%, nos próximos cinco anos. Eles sabem que não são imunes ao declínio físico e cognitivo e, entre as recomendações propostas por Murad, estão uma avaliação física e psicomotora, assim como uma autoavaliação neurocognitiva, ambas confidenciais. “Não há momento preciso para se parar, mas devemos nos preparar para aposentar o bisturi, procurando outras atividades médicas e não médicas. É necessário avaliar nossa saúde física e mental para proteção nossa e do paciente”, concluiu.
Wilson Jacob, professor titular de geriatria na USP, argumentou que, apesar de o envelhecimento trazer multimorbidades, há uma grande heterogeneidade funcional na mesma idade, com indivíduos que mantêm sua capacidade preservada. Opinião compartilhada pelo também geriatra Roberto Alves Lourenço: “estabelecer uma idade obrigatória para o cirurgião deixar de operar é discriminatório. A idade é um preditor importante, mas isoladamente não é suficiente”. Ele enumerou diversos trabalhos sobre o assunto, entre eles “The aging physician and the medical profession”, que mostra que, de 1975 para cá, o número de médicos acima dos 65 anos teve um aumento de 374% nos EUA – atualmente, um quarto está nessa faixa etária. Entre os problemas que podem ocorrer entre os profissionais idosos, listou a diminuição da destreza manual e da acuidade visual e auditiva. Detalhou a avaliação que o Yale New Haven Hospital, associado à Universidade de Yale, criou para médicos acima dos 70 anos: “dos 141 que passaram por testes de triagem, a maior parte foi logo aprovada. Outros 21 seguiram para uma avaliação completa para e 12.8% não foram recredenciados”.
O médico Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado no Brasil, sugeriu, como opções para o cirurgião idoso, que ele se torne mentor na formação de profissionais menos experientes ou seja responsável pela coordenação de equipes multidisciplinares, para compartilhar seus conhecimentos. Coube ao cirurgião cardíaco Fábio Jatene contar o que aprendeu com seus mestres: “a sabedoria acumulada e a experiência clínica do cirurgião sênior são um ativo inestimável”, enfatizou. Além de citar o pai, Adib Jatene, e o próprio Silvano, que assistia on-line aos elogios, lembrou uma frase de Euryclides Zerbini, o primeiro a realizar um transplante de coração na América Latina: “operar é divertido, é uma arte, é ciência e faz bem aos outros”. Como fecho, vale registrar que a médica Angelita Habr-Gama, de 88 anos e uma das mais renomadas gastroenterologistas do país, voltou ao centro cirúrgico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, no dia 4 de junho. Tratava-se da sua primeira cirurgia após retornar ao serviço depois de passar 50 dias na UTI, vítima da Covid-19.
https://g1.globo.com/bemestar/blog/longevidade-modo-de-usar/post/2020/07/05/a-longevidade-dos-bisturis-quando-um-cirurgiao-deve-parar-de-trabalhar.ghtml
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