Em 40ª edição, Caminhada da Seca celebra devoção popular e homenageia retirantes de 1932

Aos 70 anos, religiosa afirma ter feito parte de todas as romarias realizadas a cada segundo domingo de novembro desde 1982.

Autor Marcela Tosi 

Fiéis realizam a 40ª Caminhada da Seca, em Senador Pompeu(foto: Fernanda Barros/ O Povo) 

| Senador Pompeu | Memória e fé popular se entremeiam a cada segundo domingo de novembro. Cidade é a única a manter vivos patrimônio, história e cultura sobre os campos de concentração da Seca de 1932 no Ceará 

A chuva que caia às 4 horas deste 13 de novembro não impediu que centenas de pessoas começassem a se reunir em frente à Paróquia Nossa Senhora das Dores, no município de Senador Pompeu. Pelo contrário, parecia mensageira de que a restrição de direitos básicos e as mortes não serão repetidas. Iniciava ali a 40ª Caminhada da Seca.

“Faz parte da história da minha família, faz parte da história da cidade. Venho a pé e não sinto nada. Vim mais minha neta, filhos, noras…”, basta aparentar curiosidade sobre a caminhada que Alzira Lucinda Moraes de Lima discorre sobre o Campo de Concentração de Patu e o cemitério das santas almas. Aos 70 anos, ela afirma ter feito parte de todas as romarias realizadas a cada segundo domingo de novembro desde 1982.

Alzira é uma dos 13 filhos de Mário Antônio de Moraes, sobrevivente do Patu. “Ele veio para cá com oito anos e cavava aqui as levadas para enterrar as pessoas. Quando era de noite, ele conta que não conseguia dormir com as lembranças”, reconta a partir das histórias que aprendeu aos 11 anos de idade.

São cerca de quatro quilômetros entoando cânticos e vencendo aclives desde o Centro do município até o cemitério simbólico. O local marca o espaço onde documentos e relatos atestam terem estado as covas coletivas. Não é certo o número de vítimas da seca e do descaso do poder público; uns cravam 1.637, outros estimam de 4 mil a 10 mil óbitos.

Os católicos da região referem-se aos mortos do Patu como um “santo coletivo”. As celebrações para essa santidade formada por milhares de almas mantêm viva a memória dos que morreram nos campos de concentração do Ceará e atraem milhares de devotos todos os anos. Nesta 40ª edição, a estimativa da Prefeitura é de 8 mil caminhantes.

Entre eles estava Maria Eloísa Bezerra, que há mais de duas décadas percorre o caminho de fé e memória. Ela fez questão de levar o filho Antônio Gabriel, de 7 anos, para sua primeira romaria. “Minha avó, Maria de Lurdes, foi uma das sobreviventes daqui e a gente leva essa história para as gerações futuras. Hoje veio minha mãe, minhas irmãs, até meu irmão de São Paulo”, diz.

A tradição familiar, mas desta vez principalmente de fé, é também o que faz Jonnhy Gonçalves caminhar há 10 anos. “Sou cristão devoto, a família trouxe, minha esposa já vinha desde antes de eu conhecê-la e vamos dando continuidade”, afirma. “É um reconhecimento para essas almas que sofreram tanto e para a história da nossa região.”

Em 2021, pela lei estadual nº 17.698, a Caminhada da Seca entrou oficialmente para o roteiro turístico do Ceará. Entretanto, ainda não está registrada como um patrimônio imaterial da cultura e da história cearenses. Segundo Aterlane Martins, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) que participou dos estudos para o tombamento estadual do Campo do Patu, as pesquisas para o registro da romaria devem acontecer no próximo ano.

“Apesar de a Caminhada ter 40 anos, a devoção às santas almas tem 90 anos. A fé nos mortos do campo do Patu vem desde a seca”, acrescenta o historiador. "Hoje vemos à caminhada como um momento que publiciza a devoção religiosa e a história dos campos de concentração, ainda muito desconhecidos.”

Campos de concentração da Seca de 1932 no Ceará

Senador Pompeu, Fortaleza, Crato, Cariús, Ipu e Quixeramobim. Nesses seis municípios, há noventa anos, foram instalados sete campos de concentração para conter os retirantes da Seca de 1932.

O campo de concentração de Senador Pompeu, ao utilizar as instalações abandonadas da companhia inglesa Norton Griffiths & Company — responsável pela construção do açude Patu, é o único registro de memória edificada do gênero no Ceará. Em março deste ano, O POVO revisitou o local e esse momento da história cearense em uma série de reportagens especiais disponíveis neste link.

O Sítio Histórico do campo de concentração da Barragem do Patu, destino da Caminhada da Seca, teve seu tombamento estadual aprovado em agosto deste ano. Já tombado pelo município de Senador Pompeu, o local pode ser tombado também em nível federal. “É pensar um plano de salvaguarda desse patrimônio, desde o restauro até o uso dos espaços. Isso demanda recurso do poder público, que agora está obrigado a manter esses bens”, afirma Martins. “Aliando políticas culturais, de turismo e de educação, as coisas funcionam bem a partir daqui."

Performance leva arte e questionamentos à Caminhada

Uma cigana rezadeira, uma mulher grávida, um homem que desenvolveu transtornos mentais, outra mulher levando um prato e uma xícara nas mãos e mais uma, desta vez perambulando e rezando. Personagens incomuns e desconhecidos despertaram olhares de admiração, indagação e até susto entre os participantes da Caminhada da Seca.

Era a estreia do Coletivo Patu, com a performance artística Flagelados. “Nossa estratégia era ter um novo olhar sobre a seca. A gente tem o sítio histórico, as narrativas do povo, a narrativa da religiosidade. Fomos criando nossas narrativas a partir daí”, conta Renato Almeida.

“É fazer um resgate, mas, ao mesmo tempo, reconhecer que essas figuras, como a rezadeira, ainda perseveram na nossa realidade. Os sofrimentos, ainda que de maneiras diferentes, também persistem”, acrescenta Maríllia Holanda.

Também fizeram parte da intervenção Lígia Gardênia, Rayná Rodrigues e Luana Ávila. “A gente sabe que a pedagogia de público na nossa cidade ainda é muito escassa e estamos tentando revitalizar essa percepção artísticas nos nossos conterrâneos”, afirma o coletivo.

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