Ódio e risco à integridade física afastam padre da igreja da Paz, em Fortaleza

Sacerdote foi hostilizado por pessoas defensoras de Bolsonaro

Por DEMITRI TÚLIO

Padre Lino Allegri (centro) na Casa do Povo da Rua, em Fortaleza. (Imagem feita antes da pandemia da Covid-19, em 11/04/2012) (Foto: Igor de Melo em 11/04/2012)

O intolerante não quer dialogar. A afirmação é do padre Lino Allegri, 82 anos, pivô de uma reação de ódio e intolerância por parte de um grupo de católicos que frequentam a igreja da Paz, em Fortaleza, e são fiéis a Jair Bolsonaro

As ameaças de mais patrulha aos sermões do padre Lino Allegri, e até risco à integridade física do sacerdote na igreja da Paz, no bairro Aldeota, em Fortaleza, afastaram por enquanto o religioso das missas no templo católico. Não é uma decisão oficial da Arquidiocese de Fortaleza, apenas precaução da paróquia. O POVO teve acesso a mensagem de WhatsApp onde um homem promete monitorar e reagir à homilia de Lino Allegri.

No começo do mês, no dia 4/7, o sacerdote foi hostilizado verbalmente por pelo menos oito católicos que invadiram a sacristia. Revoltados com críticas feitas por Lino Allegri à política do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e a condução desastrosa diante da pandemia da Covid-19, fiéis apoiadores do capitão reformado pelo Exército constrangeram o padre.

De acordo com Lino Allegri e ministros da eucaristia, presentes na hora da invasão à sacristia, leigos “aos gritos e alterados” chegaram a mandar o padre “voltar para a Itália” pois não precisavam dele aqui. O padre italiano, que tem cidadania brasileira, está no País desde 1970 quando veio para ser missionário no interior da Paraíba, Bahia e Goiás. Acompanhe, a seguir, uma conversa por WhatsApp com sacerdote que foi vítima de ódio na paróquia da Paz.

O POVO – O que o senhor diria para os paroquianos que afirmam que seu sermão não foi conveniente na paróquia da Paz?

Padre Lino – Sinceramente, não saberia o que dizer. Porque, quando faço um sermão, em primeiro lugar me preparo anteriormente. Não é uma improvisação. O que tento fazer é sempre colocar a palavra de Deus dentro da realidade, do cotidiano em que o povo vive. É uma tentativa de fazer com que o Evangelho, escrito há muito tempo, possa ser uma força, uma luz para os dias de hoje. Um Evangelho se encarnando na vida do povo de hoje. Eu diria que essas pessoas têm todo o direito de discordar daquilo que eu digo, mas reivindico a liberdade de poder dizer aquilo que acho conveniente para o bem da comunidade.

O POVO – O Evangelho é também uma manifestação política?

Padre Lino – Primeiro, deveríamos entender o que significa a palavra política. Porque política significa tudo aquilo que se refere a vida humana. Todas as atitudes que nós tomamos são políticas, a gente querendo ou não. O Evangelho tem sim uma dinâmica que procura entrar na vida das pessoas para modificar à vida. Para que a vida da sociedade se torne cada vez mais humana. O Reino de Deus significa fazer com que a humanidade se torne mais humana. O Reino de Deus não é uma concepção abstrata, é real. É nessa realidade humana que Deus quer reinar. Ele reina quando as pessoas são humanas.

O POVO – O sacerdote ou o pastor que se cala diante do momento político no Brasil peca por omissão?

Padre Lino – Penso que sim. O sacerdote e o pastor não podem se calar diante da vida que as pessoas levam quando essa vida está sendo desrespeitada, machucada e violentada. A pessoa do sacerdote, no meu modo de ver, deve sim colocar o momento concreto, então político, e aqui não entendo de partidário, falo de político como ação humana que é política. O Evangelho, nós dizemos, é luz para iluminar situações concretas de desumanidade, de injustiça, de violência. O Evangelho deve dizer uma palavra que norteará a ação dos cristãos que querem ser seguidores de Jesus Cristo.

O POVO – Jesus Cristo é um personagem político?

Padre Lino – No sentido que entendo a palavra político, com certeza, Jesus era uma pessoa política como toda pessoa humana. Político quer dizer que diante de uma realidade, tenho de tomar uma decisão. Ser a favor, ser contra. Propor mudança ou propor a continuidade. Cada escolha que nós fazemos é uma ação política. E Jesus que viveu no seu tempo e viveu a realidade de seu povo, porque ele andava de povoado em povoado, era um leigo que vivia a vida do leigo do trabalhador. Em certo ponto, ele se apresentou como o enviado de Deus para mostrar o caminho que conduz a humanidade a ser humana, a ser o Reino de Deus. As decisões dele eram políticas. Repito, não partidárias. Quem o matou, além do templo dos sacerdotes, foi também o poder político romano que via na atitude dele um perigo contra quem oprimia o povo.

O POVO – O senhor já esperava a reação na paróquia da Paz, área de católicos conservadores?

Padre Lino – Eu não esperava, mas não me admirei quando ocorreu. Na verdade, não é a primeira vez que isso acontece comigo nessa igreja. De dois anos para cá, praticamente ocorreram umas quatro vezes. Houve, depois da missa, pessoas que vieram conversar comigo dizendo que não estava de acordo com o que eu tinha dito. A diferença foi que a gente conversou. Domingo, dia 4 de julho, não houve conversa. As pessoas que vieram à sacristia vieram um pouco exaltadas. Foram gritos, a meu ver não para conversar que estavam ali. Eu estava disposto a falar. Os ministros da eucaristia que estavam comigo pediram que eles saíssem, mas eu disse que deixasse que eu iria conversar. Eles vieram aos gritos dizendo que o “presidente era um bom cristão e que era bom que eu voltasse para a Itália. Aqui não precisamos do senhor”. Tudo de maneira alterada sem querer dialogar. Nas minhas pregações há gente que não concorda, isso é normal. É um direito discordar, o padre não tem a palavra absoluta. O que aconteceu no domingo não foi uma tentativa de conversa, foi uma intimidação. Houve uma violência verbal, não houve violência física. Eram gritos e não palavras de uma conversa.

O POVO – Em outras igrejas o senhor faz homilias que abordam cotidianos políticos?

Padre Lino – Sim. Aquilo que eu prego na igreja da Paz, quando celebro em outras paróquias e capelas na periferia, eu sempre faço a tentativa de ligar a fé com a vida. O evangelho com a vida. Aquilo que Jesus fala confrontando com uma prática nossa. E, também, denunciando se determinadas situações são contrárias ao Evangelho. Por exemplo, diante da morte de mais de meio milhão de pessoas (por Covid-19 no Brasil), é difícil ficar calado e não dizer nada. Não vou dizer que em todas as missas há de falar disso, mas não é concebível que a igreja não diga nada como se isso fosse natural. Naturalizar a injustiça, naturalizar a violência, os roubos que fazem à custa do povo, não podemos. Quando nós naturalizamos, estamos contra o Evangelho. As minhas pregações não mudam porque estou no Centro e, depois, na periferia. Se falo aos pobres, falo de um jeito? Escondo ou friso certas coisas ou mudo se a assembleia é de classe média e alta? Não, não mudo. Aquilo que falo na igreja da Paz, falo também na periferia onde celebro.

O POVO – Como o senhor observa a transformação do espaço da igreja em embate político?

Padre Lino – Se for um embate partidário não é o lugar. A igreja não é o espaço para isso. Se for política no sentido que já falei aqui, acho que é normal. A igreja é o espaço onde se anuncia a palavra de Deus. Agora, uma palavra de Deus que não é para extraterrestres. A palavra de Deus é para nós humanos, para melhorar a nossa vida humana. Diante da violência e da morte de pessoas, por exemplo, que são gays, negros ou porque são de favelas. A igreja não pode ficar calada e tem todo o direito de denunciar. Isso é fazer política, mas não partidária. É política no sentido mais bonito da palavra.

O POVO – O que fazer para transformar a intolerância em acolhimento?

Padre Lino – O tempo que estamos vivendo é difícil acolher o diferente, quem pensa e age diferente. É difícil aceitar uma pessoa que tenha uma escolha política partidária “x” por outro que tem uma escolha partidária “y”. É difícil acolher uma pessoa homossexual porque me considero heterossexual. É difícil defender a mulher que é violentada diante daqueles que acham normal. A intolerância é difícil de ser acolhida. Eu li uma frase, não sei onde, que perguntava “como tolerar o intolerante?”. O intolerante não quer dialogar. O acolhedor é aquele que quer dialogar mesmo na diferença, mesmo nas visões diferentes de mundo, de igreja, de sociedade, de ideologia. Para que não haja intolerância é necessário que haja vontade de diálogo. O diálogo não significa que, depois, eu vou pensar como o outro. Pode até continuar com as diferentes visões, mas no diálogo se respeita o outro. Acolhe-se o outro mesmo na diferença. O outro não deve se tornar um inimigo porque tem uma preferência diferente da minha. Eu posso conviver com o diferente, o diferente não pode ser tratado como meu inimigo e como inimigo de Deus.

O POVO – Qual o papel das religiões no combate à intolerância?

Padre Lino – As religiões deveriam ter o mesmo objetivo comum que é ajudar a gente a se relacionar com Deus. Agora, a gente se relaciona com Deus na medida em que nos relacionamos com as pessoas. Não existe uma maneira diferente de se relacionar com Deus e outra com as pessoas. Tanto é verdade que o mandamento maior é amar a Deus e amar ao próximo. O amor a Deus e o amor ao próximo não são diferentes, um é o espelho do outro. Eu sei que está mais difícil hoje do que no passado aceitar aquele que age e pensa de maneira diferente, mas essa intolerância nós temos que saber superar. As religiões têm de ajudar nisso e não aprofundar a intolerância e as divisões.

PERFIL DO PADRE LINO ALLEGRI

Lino Allegri nasceu em 21 de dezembro de 1938, na Itália. Começou a vida religiosa ainda na infância e frequentou seminários católicos até a adolescência. Estudou Teologia e foi ordenado padre em 1965. Chegou a ser vigário em paróquias italianas, onde quis ser um padre-operário. Não conseguiu e por ordens superiores, em 1970, veio para o Brasil.

No Brasil, em meio à ditadura militar (1964-1985), Lino atuou em cidades interioranas da Paraíba, Bahia e Goiás. Sempre em comunidades muito pobres e, a partir da Bahia, tendo o irmão Ermano Allegri, também padre, ao lado. Missão que o trouxe a Fortaleza em 1991.

Na capital cearense foi pároco nos bairros Genibaú e Tancredo Neves, e na comunidade das Goiabeiras, na Barra do Ceará. Coordenou as pastorais sociais da Arquidiocese no Estado e o Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. Padre Lino foi diretor da Agência Anote.

Além da paróquia da Paz, padre Lino já celebrou missas na capela de São Roque, no bairro Sabiaguaba, na capela de Santa Terezinha, no Monte Castelo, na Comunidade do Trilho e na paróquia da Lagoa Redonda. É membro da coordenação da Pastoral do Povo de Rua.

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