"Não tinha comida nem água para banho", diz homem resgatado de trabalho análogo à escravidão no CE
O dia 28 de janeiro é a data nacional de combate ao trabalho escravo.
Escrito por André Costa
Nos últimos dez anos, foram 289 trabalhadores resgatados em condições análogas à de escravidão – ampla maioria no meio rural. Só em 2013, foram 103, ano com maior número.
Algumas marcas da vida transcendem o corpo e se fixam na alma. Em alguns casos essa "perpetuidade" é louvada por remeter doces e boas lembranças. Em outras, o sentimento é oposto. A síntese desses casos pode repousar na frase em tom de desabafo de um homem de 54 anos, resgatado de um trabalho análogo à escravidão em Beberibe, no litoral cearense. "Aquilo era um inferno", rememorou Pedro, nome fictício.
O dia 28 de janeiro é a data nacional de combate ao trabalho escravo. Essa data, para Pedro, tem forte significado. Em 2018 ele entrou para a triste estatística do Ceará, sendo um dos 608 trabalhadores resgatados nos últimos 25 anos. Na última década foram 289. O Sistema Verdes Mares conversou nesta quinta-feira (28) com o homem que por 40 dias viveu em condições sub-humanas na cidade de Beberibe. "Foi um sofrimento grande", diz Pedro.
Proposta e esperança
Tudo começou com uma proposta de emprego que, embora não fosse tão tentadora, conforme ele mesmo avalia, teria grande valia para a "ajudar no sustento de casa". O ano era 2018. Desempregado, assim como sua esposa, Pedro não conseguia trabalho fixo em sua cidade natal, Viçosa do Ceará. "Vivia de bico" - expressão usada para fazer referência a um trabalho esporádico, sem vínculos ou garantia de periodicidade.
"Um amigo meu disse que tinha um homem atrás de pessoas que trabalhassem como pedreiro. Ele pagava R$ 80 a diária, dava refeição e um local para dormir. A gente ia trabalhar em uma obra, por 15 dias. Depois desse período, voltava para casa. Aceitei. A situação estava muito ruim. Eu desempregado, minha mulher também fazendo apenas bico.Tinha dia que não tinha nem como comprar comida para os meninos", relatou Pedro.
Proposta aceita, Pedro embarcou para Beberibe. Na bagagem, poucas roupas e muita esperança de retornar com algum dinheiro que pudesse aliviar a situação da família.
Início de um pesadelo
Logo no primeiro dia, a esperança foi nocauteada pela dura realidade encontrada por Pedro e outros nove homens também atraídos pela proposta salarial. "Não era nada do que ele tinha dito. A gente comia só uma vez por dia. O lanche da manhã era só café puro, não tinha pão, não tinha nada. Nem água para tomar banho tinha no local. Era muito sofrimento".
Legenda: Muitos só faziam uma única refeição por dia - Foto: Divulgação
A única parte verídica do que fora mencionada pelo "contratante" era a construção civil. A obra existia. O trabalho, também. Muito, por sinal. "Trabalhava de 7 da manhã até 10 horas da noite. Sem parar e todo dia, até no fim de semana. Ninguém descansava não", relembra.
Tamanho esforço físico não era recompensado nem por uma noite digna de repouso. Pedro detalha que em "dois quartos pequenos dormiam todos os dez [trabalhadores]". O local de apoio não contava com água encanada, assim como não dispunha de banheiro. "A gente fazia as necessidades no mato", acrescenta.
Dias sem fim
A promessa inicial de que seriam 15 dias de trabalho também não foi cumprida. Logo nos primeiros dias o "contratante" informou ao grupo que seria um mês de trabalho. O prazo foi além. "Vivemos 40 dias nesse inferno".
A essa altura, comunicar-se com a família era uma missão impossível para Pedro e os demais colegas. "No começo eu ligava para minha esposa todo dia. Tinha crédito no celular. Mas depois que acabou não teve mais o que fazer. O local que a gente tava era afastado demais, só chegava de camionete, não tinha como pedir ajuda de ninguém e também ninguém se arriscou sair do local, já que a gente não conhecia a área", relembra.
Os "dias sem fim" fizeram brotar uma semente de esperança naquele grupo que vivia em situação de trabalho escravo contemporâneo. Foi na ausência de contato que a esposa desconfiou. Ela então acionou uma mulher que contactou o Ministério do Trabalho. Ali era, finalmente, o início do fim.
Início do fim
"Minha esposa sabe que não sou homem de ficar sem dar notícia. Quando ela desconfiou de que tinha algo errado, ligou para um pessoal e contou quem foi o caba que tinha chamado a gente", relatou Pedro.
Em posse das informações fornecidas, auditores-fiscais do Trabalho investigaram e, poucos dias depois, chegaram ao local em que estavam os dez trabalhadores. "Quando eles chegaram, a gente estava trabalhando. Ave Maria... Não gosto de nem de lembrar daquele sofrimento". Essa marca em Pedro, que transcendeu o corpo e fez morada - ainda que indesejada - em sua alma não é um caso isolado.
Desde 1995, foram resgatados mais de 55 mil pessoas em situações semelhantes no Brasil. Todas carregam histórias e acumulam marcas, assim como as de Pedro, difíceis de serem digeridas. "Hoje a gente ainda vive com dificuldade, mas pelo menos estou perto da minha família", finaliza.
Sem receber qualquer remuneração pelo trabalho desempenhado ao longo de 40 dias, Pedro voltou à Viçosa do Ceará. Hoje ele continua no ofício de pedreiro. Sua esposa segue fazendo bicos para complementar a renda familiar.
Luz no futuro
Histórias como a Pedro apesar de ainda ecoarem no Brasil, estão "cada vez menos frequentes", conforme avalia Daniel Arêa Leão Barreto, chefe de fiscalização do trabalho no Ceará. "A atuação nos últimos anos tem sido mais intensa e isso reflete na diminuição dos casos. Em 2020, por exemplo, não houve nenhum registro no Ceará".
Daniel reforça que, para uma atuação efetiva do Ministério do Trabalho, é preciso que a população denuncie, ainda que anonimamente. Essa necessidade se torna ainda mais evidente frente a redução do efetivo no número de fiscais que atuam em campo no Ceará, regredindo de 160 em 2010 para 73 em 2020.
“A redução de 45,6% dificulta o combate à contratação de mão-de-obra em situação precária e análoga à escravidão”, pontuou Daniel. “Isso nos traz preocupação, mas ao mesmo tempo observamos que houve redução de casos ilegais graças ao combate sistemático da fiscalização”.
Em casos de flagrantes, a lei prevê multa e embargo das obras, para casos de construções. Criminalmente, o caso é direcionado ao Ministério Público.
Situações análogas ao trabalho escravo:
Trabalhos forçados: manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas
Jornada exaustiva: em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida
Condições degradantes: incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador
Servidão por dívida: fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele.
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