Casal de mulheres do interior do Ceará conquista na Justiça direito à dupla licença-maternidade
Cearense conquistou na Justiça o direito a licença-maternidade igual à esposa, grávida de gêmeos.
Decisão fortalece a garantia de direitos igualitários à comunidade LGBTI+.
Por Isabella Campos e Beatriz Rabelo, G1 CE
Foto: Arquivo pessoal
"Que mãe sou eu, se não gestei ou adotei, mas os filhos são meus? Sou menos mãe que as demais?". Os questionamentos são frutos da insegurança de uma funcionária pública cearense, que não quis se identificar, cuja esposa está grávida de gêmeos. Ela teve o direito à licença-maternidade negado pela Prefeitura de Morada Nova, a cerca de 155 quilômetros de Fortaleza, onde trabalha. Os 120 dias em casa após o nascimento dos filhos, porém, foram garantidos pela Justiça do Ceará, na última sexta-feira (25).
As mães acreditam que o caso de 'dupla licença' é primeiro no estado. Consultado, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) não pôde confirmar se a decisão é inédita, mas não descartou o entendimento.
A gestação completou 36 semanas nesta terça-feira (29).
A decisão foi efetivada em primeira instância pela juíza Cristiane Maria Castelo Branco Machado Ramos, da Primeira Vara da Comarca de Morada Nova, no interior do Ceará. A sentença teve como base uma repercussão do posicionamento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, em 2019, que afirmou ser dever do Estado "assegurar especial proteção ao vínculo maternal, independentemente da origem ou filiação ou da configuração familiar".
Segundo o processo, a Procuradoria Geral do Município de Morada Nova negou a concessão do benefício, argumentando "ausência de amparo legal".
No entanto, a magistrada observou "a igualdade das relações homoafetivas, principalmente no tocante à licença-maternidade, pois a autora gostaria de desempenhar o seu papel maternal de forma ampla; contudo, teve seu direito reprimido pela administração pública, por entender que somente uma das mães teria o direito de usufruir da licença-maternidade".
E continuou: "No mais, deve-se obrigatoriamente levar em consideração os direitos concebidos pela Corte Suprema no que tange as relações homoafetivas, haja vista a impossibilidade de tratamento diferenciado. Assim, ainda que a parte autora não seja a gestante, deve ser considerada como mãe biológica".
A Prefeitura ainda pode recorrer de decisão. O G1 tentou contato com o executivo municipal pelo telefone disponibilizado no site, mas a ligação não completou.
Trâmites
"Antes da primeira negativa, tínhamos certeza de que não haveria por que negar um pedido de direito como esses a uma mãe. Mas quando recebemos a negativa administrativa, percebemos que há uma leitura engessada da maternidade, em que muitos só reconhecem como mãe perante seus direitos quando associados à adoção ou gestação", relembra a mãe.
O intuito do pedido, como ela reforça, "era conseguir viver e presenciar o máximo dos primeiros dias de vida dos filhos juntas", por compreenderem que é uma fase marcada pelo fortalecimento dos vínculos e pelas adaptações que a chegada dos pequenos exige. A conquista pela via judicial, segundo a funcionária pública, abre precedentes para fortalecer os direitos da comunidade LGBTI+.
"Hoje nos orgulhamos de dizer que somos igualmente mães perante nossos direitos e, com mais orgulho ainda, abrimos precedentes para outras mães que estão na nossa situação se fortalecerem para também conseguirem."
Desafios
Antes de obter sentença favorável, a negativa fez o casal atravessar momentos de frustração e incertezas sobre conseguirem exercer, juntas, a maternidade "tão desejada" há anos. A funcionária pública fez o pedido de licença em julho de 2020, perante a Prefeitura de Morada Nova, que negou o requerimento e ofereceu, em troca, cinco dias de licença-paternidade.
“Quando saiu, o parecer foi extremamente lesbofóbico, negando esse direito à mãe e querendo aplicar, por analogia, a licença-paternidade. Ou seja, ela teve a sua maternidade negada em decorrência da violência institucionalizada”, considera Thayná Silveira, jurista e ativista da causa LGBTI+ que auxiliou o casal na construção do pedido jurídico.
De acordo com Thayná, o resultado só foi possível pela força das mães.
“Ela, desde o começo, foi super resistente, no sentido de não aceitar licença-paternidade, nem licença-adoção, porque ela não é mãe adotiva nem é pai. Essa força delas, essa energia de luta, é não aceitar nenhum direito a menos, não aceitar essa invisibilização”, enfatiza.
Processo
A jurista e o advogado responsável pelo caso, Lázaro Gadelha, construíram a tese expondo a violação de vários princípios, como o da igualdade e o do melhor interesse da criança, que aponta o vínculo normativo capaz de assegurar a efetividade do recém-nascido.
“[Essa situação] era uma violação muito grande, violento com os direitos LGBT pelos quais a gente tanto luta”, destaca Thayná.
Para Lázaro Gadelha, o maior desafio foi encontrar exemplos nacionais para fortalecer o pedido "já que se trata de uma tese muito recente e ainda em processo de construção de jurisprudência”.
"No tocante ao Direito de Família, a lei dificilmente consegue acompanhar as evoluções e as novas demandas familiares, assim, dependemos, na maioria das vezes, de decisões judiciais para a conquista de direitos e proteção”, completa o advogado
Importância do direito
A vitória na causa é vista pelas mães como uma conquista para toda a comunidade LGBTI+. “Acredito que demos um grande salto no tocante aos direitos LGBTI+, visto que o judiciário passa a entender novas composições de família e reafirma a nossa existência, principalmente em tempos de tanta intolerância e de tanta ameaça aos direitos humanos em decorrência de um conservadorismo e fundamentalismo que vem tentando se enraizar”, destaca Thayná.
As mães, que aguardam, agora, a chegada dos filhos e dos 120 dias cuidando deles juntas, reforçam: “é o primeiro caso de dupla licença reconhecida para o estado do Ceará e mais um caso reconhecido no país. A nossa família existe, é repleta de amor e vai brigar até o final por todos os nossos direitos.”
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