Terra do fogo: como Roraima se tornou o estado com maior número de incêndios em fevereiro de 2024

Focos de calor: entre os 10 municípios do Brasil com maior focos de calor, oito são de Roraima

Estado concentra quase 30% de todos os focos de calor do país até 28 de fevereiro. Problema é causado pela estiagem, agravada pelo fenômeno El Niño; governo federal reconheceu situação de emergência em 9 dos 15 municípios do estado.

Por g1 RR — Boa Vista

8 dos 10 municípios com maior nº de focos de queimadas em fevereiro são de Roraima

Roraima tem registrado desde o início de fevereiro um crescente número de incêndios e chegou nessa quarta-feira (28) a 2.605 focos de calor quase 30% do total registrado em todo o país, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em meio ao período seco, moradores de todo o estado enfrentam a fumaça e lidam com a devastação.

Na capital Boa Vista, desde a última semana, as noites têm sido marcadas pelas nuvens de fumaça geradas pela soma de incêndios urbanos, na zona rural, e de municípios vizinhos, como o Cantá e o Bonfim, o que deixa a qualidade do ar "péssima".

No estado, os principais problemas são:

Focos de calor: entre os 10 municípios do Brasil com maior focos de calor, oito são de Roraima - cinco deles estão em emergência pela estiagem (em amarelo no gráfico mais abaixo), reconhecida pelo governo federal.

Seca severa: a estiagem é causada pela redução no volume de chuvas - um padrão característico do fenômeno El Niño para o período.

Fogo para todo lado: em Amajari moradores relatam perdas de casas, produções agrícolas e animais. A cidade também tem a qualidade do ar péssima.

Histórico: segundo pesquisador, estado enfrenta um dos três eventos climáticos mais críticos de sua história.

Pé de banana queimado por incêndios na Malacacheta, no Cantá, em Roraima — Foto: Samantha Rufino/g1 RR

Incêndio atingiu barracão, segundo associação Yanomami — Foto: Missão Catrimani/Divulgação

Incêndio atinge Amajari, Norte de Roraima — Foto: Samantha Rufino/g1 RR

Terra Yanomami: A Terra Indígena Yanomami, a maior do país, também está sob impacto do fogo, que se soma a outros problemas enfrentados pelos indígenas, como a malária e a desnutrição.

Focos de calor

Com base nos dados do INPE, a Defesa Civil de Roraima observou que em fevereiro os focos de calor saltaram no estado. Em janeiro foram registrados 604 focos, enquanto que, em fevereiro, até essa quarta-feira (28), foram 2.001.

"A explosão no grande número de incêndios começou em torno do dia 4 de fevereiro e se intensificou durante o período de Carnaval. Isso acaba sendo uma questão cultural, a gente sabe que aqui no estado muitos produtores, da agricultura familiar, que tem áreas propícias a queimar, fazem a limpeza das áreas com a queima nessa época do ano", explicou o coordenador da Defesa Civil Cleudiomar Ferreira.

Um levantamento da organização não governamental Greenpeace encontrou uma ligação entre os incêndios florestais em Roraima e queimadas controladas que receberam autorização do governo estadual: foram emitidas 55 licenças ambientais para realização queimadas controladas durante a seca severa.

O governo, no entanto, afirma que revogou todas as autorizações. Informou também que atua com a operação Verão Seguro, que tem entre suas ações, as contratações de 230 brigadistas e a perfuração de 50 novos poços artesianos.

"Aquelas autorizações que foram dadas, em sua maioria, para queima de área de pasto, podem ter se alastrado para floresta. Além, é claro, da maioria desses focos de calor ocorrerem sem licença nenhuma, de forma ilegal", explicou Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace Brasil. "O fogo na Amazônia é muito utilizado basicamente para a renovação de pastagem, o problema é que esse fogo pode perder o controle e ir para áreas de floresta".

Oficialmente, o estado segue no período seco até abril. Até lá, a Defesa Civil estadual estima que o risco de propagação de incêndios continuem. Com base em dados de anos anteriores, a projeção do Greenpeace também é de que seja um período com alta de focos de calor.

No início do mês, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima declarou estado de emergência ambiental em Roraima até abril de 2025, em razão dos riscos de incêndios florestais no estado.

Depois, o governo federal também reconheceu situação de emergência, já decretada também pelo estado, em nove municípios devido aos efeitos da estiagem: Amajari, Alto Alegre, Cantá, Caracaraí, Iracema, Mucajaí, Pacaraima, Normandia e Uiramutã.

Seca severa

Desde setembro do ano passado, Roraima passa pelo período seco que deve durar até abril. O cenário de incêndios se agravou em janeiro, segundo um parecer técnico elaborado pela Defesa Civil que sugeriu a decretação de situação de emergência em nove dos 15 municípios de Roraima.

O nível de água no Rio Branco, principal rio de Roraima e responsável por abastecer com água potável a população de Boa Vista , baixou 10 centímetros em uma semana, e atingiu a marca de - 0,15 centímetros.

O relatório técnico da Defesa Civil que embasou o decreto de emergência no estado apontou situ-ações como escassez de água, prejuízos à agricultura e pecuária, incêndios florestais e problemas de saúde nos nove municípios.

O parecer também cita que a situação tem sido agravada pelo fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico e freia a atuação de frentes frias no Brasil.

'Fogo para todo lado'

O município de Amajari é um dos mais afetados e tem "fogo para todo lado", conforme Chaguinhas Soares, coordenadora da Defesa Civil da região.

"Mesmo tendo a brigada do Prevfogo, a questão é: fogo para todo lado", resumiu Chaguinhas Soares, coordenadora local da Defesa Civil da região.

No município, alguns moradores contaram que viveram dias sem dormir para controlar os incên-dios que nos últimos dias queimaram aos menos cinco casas, mataram animais e poluíram o ar com fumaça.

Na propriedade do produtor rural Francisco da Cruz, em Amajari, o fogo matou um bezerro recém nascido e deixou outro ferido.

"A gente não dorme, nem de noite e nem de dia, tentando combater esse fogo. É uma coisa incontrolável . O que tem na frente ele vai levando, casa, animais, vai prejudicando tudo. A gente está nessa situação", contou.

No último dia 22, a qualidade do ar no Amajari atingiu 44 µg/m3 em poluição causada por fumaça, três vezes o nível máximo de 15 µg/m3, recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

"Três vezes mais do que o preconizado pela Organização Mundial de Saúde. Então, você imagina quanto o pessoal dessa região sofreu e continua sofrendo, porque o nível de poluição continua alto", afirmou o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Reinaldo Imbrozio Barbosa, que há mais de três décadas estuda incêndios na Amazônia brasileira.

Na capital Boa Vista, o último dia 22 foi o mais crítico: o ar atingiu 82 µg/m3, cinco vezes o recomendável pela OMS. Na semana passada entre 19 e 23, os dias "foram péssimos para todo morador de Boa Vista", disse o pesquisador. "Todo dia nós fomos fumantes passivos. Todos os dias, no dia 19, 20, 21, 22, 23".

Histórico

O período vivido em Roraima agora pode ser considerado um dos três eventos climáticos mais críticos da história do estado desde que o Inpe passou a monitoras focos de calor por meio de satélites, segundo o pesquisador Reinaldo Imbrózio, do Inpa.

"Entre setembro de 1997 e março de 1998, tivemos o chamado 'El Niño do século', tivemos apenas 32 milímetros de chuva, isso foi absolutamente nada, o lavrado [vegetação característica nessa parte da Amazônia] queimou praticamente todo, as florestas de um ponto de vista que nunca vi na vida", relembrou o pesquisador. "Depois, em 2015 e 2016 teve um outro El Niño gigan-tesco, e agora esse de 2023 a 2024".

O conhecido "incêndio de 1998" em Roraima causou uma das piores devastações por incêndios da história. À época, o fogo atingiu o ápice no mês de março e destruiu mais de 38 mil km², o que corresponde a 17% do território do estado. A destruição foi classificada como “tragédia ambiental” em todo o país.

Nesses últimos 30 anos este é o terceiro megaevento climático em Roraima

Imbrózio avalia que, com o clima seco, os incêndios tendem a continuar, embora, em proporções menores, reforçando as previsões da Defesa Civil e do Greenpeace.

"Muito provavelmente eu acho que a fumaça vai continuar no nível alto, acima do que a gente espera, do que o preconizado pela OMS, mas abaixo desses picos gigantescos que deram na semana passada, na semana retrasada", avalia o pesquisado do Inpa.

Incêndios na Terra Yanomami

Além de liderar os focos de calor no país em 2024, Roraima tem 7 das 10 terras indígenas no ranking dos territórios com mais focos de calor. A Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, lidera a lista com 262 focos em 2024, seguida da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (205) e São Marcos (71), ambas em Roraima.

A Terra Yanomami é considerada o maior território indígena do Brasil e está localizada em uma área de vegetação florestal - diferente de outras partes do estado, onde predomina o lavrado. A região já enfrentava uma crise sem precedentes, com casos graves de indígenas com malária e desnutrição severa. Agora, o fogo piora a situação dos indígenas.

Na Missão Catrimani, lideranças Yanomami relataram que o fogo queimou quase todas as roças e um malocão (casa comunitária) foi totalmente destruído em Monopi, segundo a Hutukara Associa-ção Yanomami.

A associação recebeu informações por meio do seu Sistema de Alertas sobre a ocorrência de incêndios nas regiões Missão Catrimani e Apiaú. As ocorrências são da semana de 19 a 23 de fevereiro.

"Estamos com complicações para respirar, o dia fica escuro com as fumaças. O fogo continua queimando na floresta, onde as comunidades caçam. Os Yanomami tentar apagar, mas não conseguem", comunicou a Hutukara.

A Hutukara acionou a Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye’kwana da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Ibama, ICMBio e Ministério Público Federal (MPF) para que tomem providências no combate aos incêndios e apoiem as famílias indígenas afetadas.

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2024/02/29/terra-do-fogo-como-roraima-se-tornou-o-estado-com-maior-numero-de-incendios-em-fevereiro-de-2024.ghtml