Em três meses, Covid-19 mata tantos brasileiros quanto Guerra do Paraguai

Historiador e jornalista Mauro César Silveira, autor de "A Batalha de Papel" e outros livros sobre a Guerra do Paraguai.

Legenda: O país chegou à marca pouco mais de três meses depois do primeiro óbito por um infectado de Covid-19, no dia 16 de março, em São Paulo - Foto: AFP

Escrito por Folhapress

Embora tenha saído vencedor, o país de dom Pedro 2º contabilizou um quantia enorme de óbitos, pelo menos 50 mil, segundo os estudos mais recentes e detalhados

Entre os conflitos internacionais dos quais o Brasil participou, nenhum é comparável à Guerra do Paraguai em tropas mobilizadas e, principalmente, em número de mortos.

O Brasil se uniu à Argentina e ao Uruguai, formando a Tríplice Aliança, que derrotou o Paraguai depois de uma série de batalhas ao longo de pouco mais de cinco anos, entre 1864 e 1870.

Embora tenha saído vencedor, o país de dom Pedro 2º contabilizou um quantia enorme de óbitos, pelo menos 50 mil, segundo os estudos mais recentes e detalhados.

"É preciso se dar conta da grandiosidade desse número", diz o historiador e jornalista Mauro César Silveira, autor de "A Batalha de Papel" e outros livros sobre a Guerra do Paraguai.

Silveira faz menção ao número de brasileiros mortos ao longo do maior conflito armado da história da América do Sul. Mas se refere também ao número de habitantes do país que morreram em decorrência da Covid-19 até agora.

Segundo dados compilados pelo consórcio formado por Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo, G1 e UOL, o Brasil registrou 49.101 mortes, em balanço aferido na manhã deste sábado (20). O levantamento é feito com a coleta de dados das Secretarias de Saúde dos estados.

O país chegou à marca pouco mais de três meses depois do primeiro óbito por um infectado de Covid-19, no dia 16 de março, em São Paulo. Bastou um trimestre, portanto, para que a pandemia do novo coronavírus matasse tantos brasileiros quanto essa guerra, uma das mais longas e sangrentas do século 19.

Autor de obras como "Dom Pedro 2º" e "Forças Armadas e Política no Brasil", o historiador José Murilo de Carvalho divide a Guerra do Paraguai em três etapas em relação aos mortos e feridos.

"A primeira parte, com baixas divididas entre os dois lados, vai de maio de 1866, com a primeira batalha de Tuiuti, a novembro de 1867, com a segunda batalha de Tuiuti, incluindo a epidemia de cólera de 1867, que matou uns 4.000 brasileiros", explica Carvalho.

"A segunda etapa foi a sequência de batalhas, chamada Dezembrada, de dezembro de 1868 à tomada de Assunção, em janeiro de 1869, que quebrou a coluna dorsal do Exército paraguaio. As mortes foram muito maiores do lado guarani. A última parte, com as tropas brasileiras sob o comando do conde d'Eu, vai até 1° de março de 1870. Foi uma carnificina", afirma o historiador.

O Paraguai foi devastado. Pelo menos 60% dos 420 mil habitantes do país à época morreram ao longo do conflitos –não só nos combates mas também vítimas de epidemias, como a da cólera.

Um século e meio separa os dois episódios, a Guerra do Paraguai e a pandemia do novo coronavírus. Um abismo demográfico divide o Brasil dos anos 1860 e o país de hoje – eram cerca de 9 milhões de habitantes; hoje são mais de 210 milhões. Àquela altura, uma monarquia; atualmente, uma república.

Seria leviano desconsiderar diferenças tão expressivas, além de avanços econômicos e sociais. Mas existem fortes pontos de contato entre esses dois Brasis, dizem historiadores ouvidos pela reportagem.

O descaso do poder central em relação à fatia mais vulnerável da população, uma inação que tende a acentuar a desigualdade social, aproxima os dois momentos.

"Houve naquela época, como há hoje, insensibilidade dos governantes", afirma Silveira. "A dimensão da tragédia é semelhante."

Para Adriana Barreto de Souza, autora de "Duque de Caxias - O Homem por Trás do Monumento" e especialista em Brasil Império, "o que aproxima os dois contextos é o desvalor das vidas perdidas. Só foram para a guerra aqueles que não contavam com redes de proteção, ou seja, amigos e padrinhos. Os filhos da elite, na sua grande maioria, não foram para as batalhas. Por isso, inclusive, muitos escravos foram libertados. Eles substituíram os rapazes bem nascidos. Ou seja, ironicamente, ex-escravos é que foram os defensores do Brasil".

Segundo ela, "sabemos hoje que as maiores vítimas da pandemia são (e serão ainda mais) os brasileiros pobres, em sua maioria negros. Aqui no Rio, a curva de avanço do vírus é muito clara. Já estacionou na zona sul e cresce descontroladamente na Baixada Fluminense, região periférica e historicamente desassistida pelos governos".

Outro ponto que aproxima esses momentos históricos é o risco acarretado pelo envolvimento dos militares na vida política do país.

Nos idos de 1860, os membros da caserna poderiam ser filiados a partidos políticos. Na batalha de Curupaiti, em setembro de 1866, eram três os comandantes das tropas brasileiras, o almirante Joaquim Marques Lisboa (almirante Tamandaré), o general Manuel Marques de Sousa e o também general Polidoro Jordão.

Os dois primeiros pertenciam ao Partido Liberal, e o último ao Partido Conservador.

Como explica o historiador Francisco Doratiotto em "A Maldita Guerra", desentendimentos entre os três contribuíram para que Curupaiti se tornasse a maior derrota da Tríplice Aliança ao longo do conflito diante dos homens do ditador paraguaio Solano López. Pelo menos 2.000 brasileiros foram mortos nessa ocasião.

Mais tarde, foi vetada a filiação de militares da ativa a partidos. Ainda assim, desde então oficiais e praças oscilaram entre participações ativas na vida política do país e períodos de discrição na caserna.

O governo Bolsonaro tem se notabilizado por embaralhar atribuições políticas e funções militares.

De acordo com informações do site Poder 360, contam-se hoje 2.716 integrantes das Forças Armadas em postos do Executivo.

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