‘Tive um AVC e passei por uma cirurgia no cérebro durante a gravidez’

Débora passou por uma cirurgia de alto risco para drenar a hemorragia cerebral

Débora de Carvalho Dourado foi diagnosticada com malformação arteriovenosa cerebral, uma doença conhecida como MAV. Sua filha resistiu à operação e nasceu saudável

Por Marcella Centofanti, Colaboração Para Marie Claire, e Natacha Cortêz — São Paulo

Débora de Carvalho Dourado com a filha, Clara — Foto: Arquivo pessoal

O ano de 2018 marcava a realização de um sonho para a professora Débora de Carvalho Dourado. Aos 36 anos, ela havia engravidado naturalmente, após quatro anos de tentativas que incluíram tratamento de fertilização in vitro e um aborto espontâneo. No entanto, a alegria se transformou em um pesadelo quando Débora sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), no quarto mês de gestação.

O primeiro sinal de alerta foi uma dor de cabeça forte e persistente. O obstetra atribuiu o sintoma a um efeito colateral das doses de progesterona que receitou a fim de manter a gravidez.

O desconforto se agravou quando a professora teve um episódio de enjoo, seguido por uma cefaleia intensa e súbita. “Era como se tivessem enfiado uma faca na minha cabeça”, descreve. Na sequência, Débora começou a falar enrolado e sentir dificuldade de locomoção. Levada ao hospital pelo marido, foi diagnosticada com AVC.

Cirurgia de emergência

A professora, que mora em Machado, Minas Gerais, foi transferida, já inconsciente, de ambulância para um hospital maior em Alfenas. Um exame de imagem revelou a presença de malformação arteriovenosa (MAV) cerebral, uma doença conhecida pela sigla MAV. Débora passou por uma cirurgia de alto risco para drenar a hemorragia cerebral, e as chances de sobrevivência tanto para ela quanto para o bebê eram incertas.

“Quando acordei na UTI, meu marido me contou o que aconteceu e que a nossa filha resistiu à cirurgia. Só depois que eu entendi a gravidade da situação, eu percebi que estava com a cabeça raspada. Aquele era o menor dos meus problemas”, relembra.

Na operação, os médicos removeram parte da calota craniana de Débora, que ficou com um afundamento no crânio. Embora a hemorragia causada pela MAV tenha sido controlada, o enovelado de vasos anormais permanecia no cérebro da professora: “Um médico me disse que eu tinha uma bomba-relógio na cabeça. Eu poderia um dia dormir e não acordar mais”.

Jornada de recuperação

Depois da alta, Débora procurou um neurocirurgião especialista em MAV, em São Paulo: “Ele me tranquilizou ao explicar que a malformação estava localizada em uma área menos nobre do cérebro. Ele explicou que a causa do AVC tinha sido a MAV, deu orientações para prevenir futuros problemas e pediu para eu voltar ao seu consultório uma semana depois que a minha filha nascesse”.

Enquanto o enovelado de vasos não fosse removido do organismo, a professora precisava evitar qualquer esforço, até mesmo o de uma tosse ou espirro. Débora enfrentou sequelas leves do AVC, incluindo perda de visão periférica e dificuldades motoras temporárias. O impacto emocional, no entanto, foi o aspecto mais difícil da experiência.

“Não é culpa de ninguém, mas a MAV me tirou o direito de fazer um chá revelação, de escolher o enxoval e de posar para um ensaio fotográfico de gestante. Eu tenho uma única foto da gravidez, que eu tirei pra um dia mostrar pra minha filha. É uma imagem em que o meu semblante está triste”, conta.

Por causa de um diagnóstico de pré-eclâmpsia — uma condição de hipertensão arterial durante a gestação —, Débora fez uma cesariana de emergência no oitavo mês de gravidez. Clara nasceu saudável.

A professora passou por sessões de embolização, para reduzir o tamanho da malformação e, um ano depois do AVC, foi submetida à cirurgia para a remoção da MAV. Em 2020, uma quarta operação reconstruiu sua calota craniana.

“Quando eu olho pra minha filha, vejo que deu tudo certo” diz ela. “Somos um caso de sucesso porque eu fui tratada por uma equipe especializada em MAV. Agora posso ver minha filha crescer, e isso é o que realmente importa.”

O que é MAV?

A MAV é uma doença congênita, ou seja, que nasce com a pessoa. Ela costuma se manifestar entre os 20 e os 40 anos. É considerada rara e afeta de 1 a 10 pessoas em cada 100 mil.

“As estatísticas estão aumentando por causa do acesso a exames de imagem. A pessoa faz uma ressonância magnética ou uma tomografia do cérebro, por causa de uma cefaleia ou de uma perda visual, por exemplo, e descobre a MAV”, explica o neurocirurgião Feres Chaddad, chefe do grupo de cirurgia vascular da Unifesp e chefe da neurocirurgia da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.

A manifestação mais perigosa da doença é o sangramento cerebral. No entanto, a MAV também pode se manifestar por meio de crises epilépticas, dores de cabeça, alterações visuais, perda de movimentos de um lado do corpo e alterações na sensibilidade. Alguns sintomas se assemelham aos de AVC.

A boa notícia é que, se a doença for diagnosticada precocemente, a malformação pode ser removida por meio de uma cirurgia, antes que a doença se manifeste. “O prognóstico é muito melhor para o paciente, principalmente em se tratando de patologias vasculares que se rompem e podem deixar sequelas importantes”, afirma o médico, que cuidou de Débora.

A doença tem uma afinidade pela madrugada. Durante o sono, a postura horizontal reduz o retorno venoso do sangue, congestionando as veias cerebrais. O ronco e a apneia do sono, que podem aumentar os níveis de dióxido de carbono no cérebro, também desempenham um papel na vasodilatação cerebral. Esses fatores podem contribuir para o rompimento de uma MAV durante a noite.

Segundo Feres Chaddad, a cirurgia é o melhor tratamento para a enfermidade. Porém, ela nem sempre é viável, pois pode acarretar mais riscos do que benefícios. As MAVs podem estar localizadas em áreas do cérebro consideradas nobres, que controlam funções como movimento, visão, memória e fala. Em outros casos, elas estão em locais que não causam sintomas clínicos. Além da operação, tratamentos incluem embolização e radiocirurgia.

Para o médico, exames de imagem do cérebro deveriam ser incluídos em protocolos de rastreamento regulares, a fim de detectar precocemente condições como a MAV. “Isso não apenas melhora a qualidade de vida dos pacientes, mas também reduz o impacto social e econômico daquela pessoa a longo prazo”, diz.

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