Peste negra influencia resposta do sistema imunológico até hoje, diz Nature; entenda

A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis, era altamente letal no século XIV

Pesquisador coleta dente de pessoa que morreu durante a pandemia da peste bubônica para extrair DNA. — Foto: MATT CLARKE / MCMASTER UNIVERSITY

Por Bernardo Yoneshigue

Pesquisadores extraíram DNA dos restos mortais de pessoas enterradas em massa em 1348 e 1349 durante a peste negra em Londres.. Museu de Arqueologia de Londres (MOLA)

Quase sete séculos depois da pandemia, pesquisadores descobriram genes que levaram à sobrevivência na época, mas que hoje exercem outro papel no corpo humano

Com menos de três anos, a pandemia da Covid-19 já deixa uma série de marcas na história da humanidade, como quedas inesperadas na expectativa de vida em diversos países e avanços científicos em tempos recordes. O coronavírus, porém, não é o primeiro agente infeccioso a provocar um cenário de emergência sanitária em âmbito mundial, e cientistas vêm descobrindo como a disseminação de vírus e bactérias no passado continuam a influenciar a vida e a saúde agora. Ontem, um novo e amplo estudo publicado na revista científica Nature se somou a essas evidências, mostrando os impactos da peste negra, que devastou parte da população mundial há quase sete séculos, ainda hoje.

Conduzido por um consórcio internacional de pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido e Dinamarca, o trabalho analisou amostras de DNA de vítimas e sobreviventes da pandemia da peste bubônica para entender o que definia quem iria morrer ou não pela infecção.

Eles descobriram que alterações em determinados genes de fato protegeram a população na época contra a bactéria. Porém, séculos depois, com a evolução do sistema imunológico, essas mesmas variações genéticas são associadas hoje ao desenvolvimento de doenças autoimunes – quando o próprio sistema imunológico ataca o organismo.

DNA de mortos e sobreviventes da peste

A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis, era altamente letal no século XIV, quando estimativas apontam que provocou a morte de 75 a 200 milhões de pessoas. O total era o equivalente de 30% a 50% da população dos continentes europeu, asiático e africano.

O diagnóstico ficou conhecido como peste negra por causar a morte de tecidos de partes do corpo, como mãos e pés, chamada de gangrena. Ele ainda provoca casos eventualmente, porém de forma menos contagiosa e menos fatal, podendo ser tratado com antibióticos. Porém, na época em que se disseminou pelo mundo, foi o responsável pela pandemia mais mortal já registrada na história.

No novo estudo, foram analisadas mais de 500 amostras de DNA de moradores de Londres durante o período de um século nos anos 1300, que envolveu momentos anteriores, durante e posteriores à propagação da peste, além de coletas cedidas de pessoas enterradas na Dinamarca. Os cientistas buscavam sinais de uma adaptação genética que oferecesse resistência à bactéria, e encontraram uma ligação com variações em quatro genes envolvidos na produção de proteínas que defendem o sistema imune de microrganismos invasores.

“Quando uma pandemia dessa natureza – matando 30 a 50 por cento da população – ocorre, é provável que haja seleção de alelos (versões dos genes) protetores em humanos, o que significa que pessoas suscetíveis ao patógeno circulante sucumbem. Mesmo uma pequena vantagem significa a diferença entre sobreviver ou morrer. E é claro que os sobreviventes em idade reprodutiva passaram seus genes (para os descendentes)”, explica em comunicado o geneticista evolucionista Hendrik Poinar, autor do artigo da Nature, diretor do Centro de DNA Antigo da Universidade McMaster, nos EUA, e pesquisador principal do Nexus Global da McMaster para Pandemias e Ameaças Biológicas.

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Os cientistas identificaram que as alterações nos alelos ofereciam de fato uma maior proteção contra a doença. Por exemplo, pessoas com duas cópias idênticas de um gene chamado ERAP2 tiveram uma taxa de sobrevivência à pandemia de 40% a 50% maior que os demais. Segundo os responsáveis pelo estudo, isso aconteceu porque a duplicação de uma versão do gene considerada “boa” levou a uma neutralização mais eficiente da bactéria pelas células de defesa do organismo.

“A vantagem seletiva associada aos loci (genes) selecionados está entre as mais fortes já relatadas em humanos, mostrando como um único patógeno pode ter um impacto tão forte na evolução do sistema imunológico”, diz o geneticista humano Luis Barreiro, autor do artigo e professor de Medicina Genética da Universidade de Chicago, também nos EUA.

Mudança de função no corpo

No entanto, com o tempo, o sistema imunológico evoluiu e os genes associados à proteção da peste negra, passados de geração em geração, são hoje ligados a uma maior susceptibilidade a doenças autoimunes, justamente por exacerbar a resposta do sistema de defesas do organismo.

Isso porque essa categoria de diagnósticos envolve um mau funcionamento da proteção do corpo, que leva ao reconhecimento falho de tecidos saudáveis como invasores. Com isso, os anticorpos e células de defesa passam a atacar o próprio organismo provocando danos.

Os cientistas citam a doença de Crohn, que provoca inflamações no intestino, e a artrite reumatoide, que afeta as articulações, como alguns males associados às mesmas variações nos que protegeram a população da peste bubônica há 700 anos.

“Compreender a dinâmica que moldou o sistema imunológico humano é fundamental para entender como pandemias passadas, como a peste, contribuem para nossa suscetibilidade a doenças nos tempos modernos”, diz o chefe da Unidade de Pesquisa Yersinia e diretor do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Peste no Instituto Pasteur, na França, Javier Pizarro-Cerda.

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