Tuberculose: doença volta a crescer no país e resistência a remédios preocupa
Para especialistas, queda de casos em 2020 e 2021 foi artificial, e aumento gera alerta, sobretudo no Rio
Paciente é atendido na África do Sul; doença matou 1,5 milhão de pessoas no mundo na última década NYT
Por Rafael Garcia — São Paulo
Após dois anos de relativa queda, os números da tuberculose estão voltando a crescer no Brasil e, em alguns locais, os casos de infectados com cepas da bactéria resistentes a antibióticos geram preocupação. Um dos focos de atenção é o Rio de Janeiro, relata a Fiocruz.
Os casos de tuberculose no país, que chegaram a cerca de 78 mil ao ano antes do surgimento da Covid-19, caíram para 68 mil nos últimos dois anos. Os números de 2022 ainda não estão consolidados para compor uma nova estimativa, mas especialistas acreditam que a doença deve voltar agora ao o ritmo de avanço observado pré-pandemia.
— Já estamos retomando esse ritmo, e notamos isso no laboratório,pelos testes que fazemos, que já estão voltando aos números anteriores à pandemia — diz a microbiologista Lucilaine Ferrazoli, do Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, um dos centros de referência para monitorar a tuberculose no Brasil.
— Pesquisas estão sendo feitas para avaliar qual foi o impacto da pandemia no acompanhamento da tuberculose, mas eu acredito que a gente vai ver uma retomada da notificação de casos, até porque esses casos nunca deixaram de existir — completa a pesquisadora.
Um sinal de que a doença não recuou é que, apesar da queda na notificação, os casos que resultam em mortes não se reduziram, e continuaram na faixa dos 4.500 ao ano. Se as infecções se reduziram por conta do isolamento social, possivelmente a perturbação da pandemia no atendimento médico a outras doenças prejudicou o tratamento da tuberculose.
O inverno é a temporada de maior risco de transmissão, o que permite aos médicos terem uma impressão melhor de qual será o impacto da doença no ano.
Na prática, porém, é difícil ter um quadro epidêmico no meio do ano, porque a tuberculose é uma doença com curso de tratamento longo. Os casos graves com os sintomas típicos de pneumonia, tosse com sangue e perda de peso, podem levar meses para uma cura, quando não resultam em óbito.
Por conta desse ciclo demorado, os boletins epidemiológicos que a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde divulga são anuais, apesar de os números poderem ser consultados no Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação).
A situação no Brasil não é particularmente grave, dizem médicos, porque o país padronizou o tratamento da doença e conteve o uso indiscriminado dos antibióticos, particularmente a rifampicina e a isoniazida, formuladas numa cápsula só. O recente avanço de cepas resistentes aos medicamentos, porém, preocupa.
— O Brasil não faz parte do grupo de 26 países considerados de 'alta carga' de resistência no mundo, embora nós façamos parte dos 25 países com a maior carga epidemiológica de tuberculose — afirma a pneumologista Margareth Dalcolomo, da Fiocruz, pioneira nos trabalhos de monitoramento da doença no Brasil. — A despeito de tudo isso, vêm aumentando aqui as formas resistentes, incluindo a resistência primária, que é aquela que é detectada em alguém que nunca teve a doença e se contaminou a partir de uma pessoa portadora da forma resistente.
Isso é um indício de que o sistema de saúde está falhando em detectar casos e tratá-los antes que possam se disseminar. Um dos fatores que contribuem para o avanço das cepas resistentes é a descontinuidade do tratamento, com ciclos incompletos de dosagem de antibiótico. Em vez de a droga matar a bactéria, abre oportunidade para o patógeno evoluir e adquirir resistência ao fármaco.
— Existe uma tendência, nesses casos, de colocar a culpa no paciente que abandonou o tratamento. Isso é verdade para uma parte, mas não é verdade para uma parcela grande de casos, que são os de resistência primária — diz a sanitarista Marcela Bhering, da Fiocruz.
Um trabalho da pesquisadora, em parceria com o Afrânio Kritski, da UFRJ, investigou casos entre 2000 e 2019 e indica que a ocorrência de tuberculose com resistência primária no Rio de Janeiro aumentou de 7,7% para 38,4% no período.
O estado tem sido um foco preocupante da doença nos últimos anos.
— O Rio de Janeiro é um dos estados com maior incidência de tuberculose do Brasil, é o campeão em mortalidade pela doença e concentra 25% dos casos da forma multi-resistente do Brasil — afirma Bhering.
O cenário urbano da região metropolitana é um dos fatores que contribuem para isso:
— Se explica pela própria questão socioeconômica, por a gente ter várias comunidades. Em favelas existem populações carentes muito agregadas — diz.
A dificuldade que o país tem para aprimorar o diagnóstico e o tratamento da tuberculose, porém, não é fruto apenas das limitações de recursos. Com frequência, pacientes que passam do estágio latente para o ativo da doença e são diagnosticados com formas resistentes são monitorados por sistemas de notificação diferentes. Isso dificulta as autoridades de saúde acompanharem essas pessoas.
— As bases de dados para tuberculose no Brasil são boas. O problema é que elas não conversam entre si — afirma Domingos Alves, pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, que estuda uma solução para o emaranhado de siglas que se tornou o monitoramento da tuberculose no Brasil.
— No nível nacional, nós temos o Sinan coletando dados de tuberculose. No estado de São Paulo nós temos o TBWeb. Agora, quando o paciente desenvolve resistência, é monitorado em outro sistema, o SITE-TB. No Adolvo Lutz eles fazem os exames conectados a um outro sistema, o GAL — lista o cientista.
Alves está liderando agora um projeto que batizou de ConnectTB, para conectar os diversos sistemas do país. Inicialmente, a iniciativa abrange São Paulo e Rio.
Genômica
Uma outra iniciativa para tornar o monitoramento de tuberculose resistente mais ágil está sendo liderada por Ferrazoli e Ângela Brandão, do Adolfo Lutz. Elas integram a rede internacional CRyPTIC, que usa genômica para rastrear as cepas mais preocupantes.
Ana Luíza Gilbertoni, pesquisadora da Universidade Oxford que integra a iniciativa, afirma que o peso da tuberculose na saúde mundial ainda não atrai atenção equivalente do público.
— A maioria das pessoas não faz ideia de que é ainda um problema tão relevante — diz a pesquisadora. — A tuberculose sempre foi a doença infecciosa que mais matou no mundo, agora desbancada pela Covid-19. Na última década matou mais de 1,5 milhão de pessoas.
Gilbertoni ressalta também a importância de frear a resistência a antibióticos.
— Numa tuberculose que é insensível aos medicamentos, na melhor das hipóteses o tratamento dura por seis meses, tomando quatro drogas diferentes. Na pior das hipóteses, o tratamento demora de um a dois anos, introduzindo drogas endovenosas, e com muito potencial para efeito colateral — explica.
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