Sem proteção adequada, médica se afasta do combate à covid, não pude expor minha família
Júlia Rocha, médica de Família e Comunidade e funcionária de uma UPA da Região Metropolitana de BH
Júlia Rocha, médica de Família e Comunidade e funcionária de uma UPA da Região Metropolitana de BH Foto: Acervo pessoal/Júlia Rocha
'Tenho consciência que os equipamentos que usamos pra nos proteger não garantem nossa saúde', diz Júlia Rocha
Médica de Família e Comunidade e funcionária de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Júlia Rocha decidiu interromper o trabalho no atendimento de pacientes com a Covid-19 por avaliar que, sem equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados, colocaria a saúde de sua filha e de seu marido em risco. Por estar trabalhando com pacientes infectados e ainda estar amamentando, decidiu ficar em casa.
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"Chegou a ficar bem tenso no começo e eu, depois de pensar muito, decidi me afastar. Meu marido é do grupo de risco, ele tem asma. Com isso, eu teria que ficar sem contato com ele e com a minha filha por tempo indeterminado. Isso foi demais pra mim", contou à coluna.
Segundo Rocha, os EPIs fornecidos não eram suficientes.
"Tenho consciência que os equipamentos que usamos pra nos proteger não garantem nossa saúde e não pude expor minha família dessa forma. Minha filha chorava todo dia pra me ver. Eu via as pessoas nas ruas, sem a menor noção do que estávamos passando na emergência. Isso pesou muito pra eu buscar outras alternativas. Quando vi minha filha chorando em uma chamada de vídeo decidi parar".
A médica, que também é cantora profissional, sempre trabalhou em postos de saúde, com atenção primária à saúde, e começou a atender na UPA nos primeiros dias da pandemia.
"Meu marido e minha filha tiveram que fazer mala e sair de casa. Ficaram de favor na minha mãe, com a rotina toda improvisada. Eu sem garantia nenhuma no trabalho. Se eu adoecesse e morresse ia deixar só minhas dívidas pra eles. Tinha vínculo como autônoma. Depois da primeira semana de plantões eu decidi passar meus compromissos na UPA para outros colegas e tive de esperar 14 dias para poder rever minha filha", lembra.
A cantora nasceu aos 15 anos de idade — ela está com 36 — e depois naturalmente conciliou a atividade com a medicina.
"A cantora traz intuição, leveza... a Júlia cantora emociona a Júlia médica. A medicina me mostra a dureza e a complexidade da vida. Me mostra como a exploração e a desigualdade matam mães, país, avós, bebês. A medicina me faz ser uma artista muito mais engajada politicamente porque me traz o sofrimento sem glamour. Me traz o cheiro da dor do outro e me obriga a ter compaixão", compara.
Filha de pai médico e de mãe cantora e instrumentista — toca violão —, diz que foi a mistura que a moldou como ser humano. Não é fácil combinar as duas profissões. "As minhas olheiras explicam muita coisa", brinca.
A dureza da Covid-19 a marcou, mas lembra que para a população pobre não é um sofrimento novo.
"Eu sempre trabalhei com populações muito vulneráveis. Os desafios relacionados às injustiças sociais são imensos. É claro que há o desconhecido, o inesperado, o surpreendente e o imprevisível desta pandemia, mas há que se reconhecer que a população pobre deste país vive mal desde sempre".
https://epoca.globo.com/guilherme-amado/sem-protecao-adequada-medica-se-afasta-do-combate-covid-nao-pude-expor-minha-familia-24380196
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