História da beata negra que protagonizou milagres em Juazeiro

Essa espécie de apagamento histórico e cultural das pessoas negras chama-se epistemicídio

Legenda: Estátua da Beata Maria de Araújo em exposição no Museu Vivo do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte. Ela foi enclausurada após episódios considerados milagre para o catolicismo - Foto: Foto: Antônio Rodrigues

Memória aos pedaços: conheça personalidades negras invisibilizadas na História do Ceará

Escrito por Natali Carvalho

Narrativas históricas do País foram embranquecidas, como evidência do colonialismo e do racismo

Pense em cinco personalidades relevantes na História do Ceará. Alguma delas era negra? Apesar de serem invisibilizados na História, o Estado tem em sua memória social nomes de personalidades negras que foram destaque em lutas sociais, principalmente ligadas ao abolicionismo. São pessoas como Tia Simoa, Beata Maria de Araújo e José Napoleão, que fazem parte da memória do Ceará, mas geralmente não são destacadas.  

Lucas Vidal, doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), lembra que essas narrativas históricas foram embranquecidas, como uma evidência do colonialismo e do racismo ainda muito presente na educação e na maneira como contamos as histórias. “A gente folcloriza a nossa identidade, não percebemos que a ancestralidade não é coisa do passado, mas sim que permanece. Nós, enquanto pesquisadores, temos o dever de escavar essas histórias e apresentá-las com outras narrativas”, explica. 

Essa espécie de apagamento histórico e cultural das pessoas negras chama-se epistemicídio, conforme explica o professor português Boaventura de Souza Santos, e se dá em um processo de destruição, silenciamento ou invisibilização de saberes não-hegemônicos. 

A historiadora Karla Vieira Alves evidencia que o povo negro tem sua história inscrita na luta pela vida desde que pôs, forçadamente, os pés nas terras brasileiras. “Essa luta começa através da recordação, já que sem livros, sem fotografias, sem qualquer registro de sua história que não fosse seu próprio corpo, pretos e pretas registraram suas lembranças através da luta por sobrevivência”.  

Preta Tia Simoa 

A mulher na luta pela libertação dos escravizados

Simoa era escravizada e também uma liderança religiosa de matriz africana, como indicam os prefixos “Preta" e “Tia" carinhosamente associados ao seu nome. Sendo uma das responsáveis pelo movimento dos jangadeiros, a mulher, que era esposa de José Napoleão, foi apagada da historiografia oficial - o nome dela sequer é lembrado ou conhecido na História de liberdade do povo negro cearense.  

A historiadora Karla Alves conta que Simoa, na Greve dos Jangadeiros realizada em janeiro de 1881 na capital da província, foi responsável por articular e mobilizar parte da população cearense para apoiar o movimento daqueles que eram responsáveis por transportar em suas jangadas os escravizados da praia até as embarcações ancoradas no mar.  

“O protagonismo de Simoa ao lado dos seus companheiros e companheiras ocultas na historiografia oficial é referência de luta pela liberdade, que, sabiam eles, não estava assegurada com a abolição. Por este motivo, as ações de Tia Simoa na mobilização popular em apoio à greve dos Jangadeiros deve continuar ativando e potencializando ações de liberdade mental e corpórea, mostrando ao povo preto de hoje, assim como mostrou aos que estavam aqui antes de nós, que somente a mobilização e a autonomia da luta organizada pode garantir nossa liberdade”, explica a historiadora. 

Beata Maria de Araújo 

Em sua boca, o milagre de Juazeiro acontecia

Todo cearense já ouviu falar do Padre Cícero e de seu milagre. No entanto, conforme ressalta a historiadora Karla Alves, não eram as mãos de Cícero que transformavam as hóstias em sangue, e sim a boca da mulher preta Beata Maria de Araújo.

A mulher é verdadeira protagonista do milagre que aconteceu em Juazeiro do Norte, um ano após a abolição ter sido decretada no País. Nascida em Juazeiro, que na época ainda era uma vila pertencente ao Crato, ela conhece o religioso que recebeu a missão de ir para a vila acabar com as religiões afrodescendentes por meio do catolicismo.

Em uma missa, quando ele ofertou a comunhão, o pequeno círculo branco se transformou em sangue na boca de Maria de Araújo. O episódio passou a se repetir não apenas com Padre Cícero, mas também quando outros religiosos ofertavam. Existem registros que descrevem que a Beata passou a apresentar em seu corpo as cinco chagas de Cristo sangrando.  

Começa a haver uma intensa peregrinação na terra, e a igreja queria romper com isso, relembra a História. O milagre precisava ser suprimido para evitar qualquer tipo de peregrinação. Em relatos orais coletados por Karla durante suas pesquisas, ela descobriu que, em romarias mais antigas, o trajeto passava primeiro no túmulo da beata. Nos rosários utilizados pelos romeiros e até mesmo por alguns moradores da vila, havia uma medalha: de um lado tinha o Padre Cícero e no outro a Beata. Essa medalha foi proibida pela Igreja.  

A Igreja mandou diversas comitivas para investigar o milagre. É nesse ponto que, segundo a pesquisadora, começa o processo de invisibilização da beata. Maria de Araújo foi enclausurada e presa pela diocese, além de ter sofrido torturas físicas, pois a Igreja queria investigar cientificamente os sangramentos.

A mulher acabou morrendo no completo abandono e silêncio. Os restos mortais dela - que haviam sido guardados na Capela do Socorro - foram roubados e não se sabe onde estão. Em cima do túmulo, construíram o muro da Igreja. “O que puderam suprimir e apagar da beata para retirar o protagonismo, eles fizeram. Desde a sua participação no milagre à sua existência”, explica Karla. 

“Se não fosse o silêncio de uma mulher preta, esse homem branco não teria a santidade que tem. Esse poder só é poder como consequência de uma causa, que foi o epistemicídio da história, inclusive roubando até o que estava enterrado. Até o corpo dessa mulher foi roubado, é assim que funciona o epistemicídio. Para não se configurar enquanto memória na consciência da população, a partir de um poder simbólico, o fato precisava ser apagado totalmente, e foi o que fizeram com Maria de Araújo”, conclui Karla. 

José Napoleão 

Além de Dragão do Mar 

José Napoleão foi um homem escravizado que comprou sua alforria e a de muitos amigos que também viviam como ele, e um dos principais nomes do Movimento de Jangadeiros, que durou quatro dias, segundo historiadores cearenses. Vale registrar que esta greve foi o episódio que impulsionou os acontecimentos para a efetivação da abolição, que seria decretada três anos mais tarde. 

Após comprar sua alforria, ele passa a morar na Praia do Peixe, junto com a esposa Preta Simoa e os amigos que alforriou. Segundo Hilário Ferreira, mestre em História Social e pesquisador da História e Cultura dos negros no Ceará, “é possível que eles tenham optado por morar próximos uns dos outros para evitar que algum comerciante os raptasse como cativos, rasgando suas alforrias, já que era uma situação que acontecia na época”. Napoleão era o chefe da capatazia de jangadeiros e se negava a transportar os negros para as embarcações que os levariam para serem escravizados em outras províncias.  

Segundo a historiadora Karla Alves, mais tarde, José Napoleão funda, junto aos seus companheiros de luta, o Club dos Libertos, e continua na luta por liberdade, mesmo após a abolição. Contudo, é curioso notar que as notícias sobre a greve publicadas nos jornais da época não fazem qualquer menção a José Napoleão. Mesmo o jornal abolicionista de maior prestígio, o jornal “Libertador", pertencente à Sociedade Cearense Libertadora, não registra o protagonismo ou mesmo qualquer participação dele na greve. Chico da Matilde (o Dragão do Mar) aparece como homem mais adequado para os interesses dos abolicionistas da Sociedade.  

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