De bonecas de pano ao desenvolvimento de negócios, afroempreendedorismo ganha destaque no Ceará

Economia gerada a partir de iniciativas negras no Estado movimenta o PIB de comércio e serviços diferente de setores tradicionais

Escrito por Luciano Rodrigues - 09 de Novembro de 2024 

A artesã Virgínia Ramos é natural de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, e há 15 anos se especializou no artesanato de bonecas de pano. A principal característica é o destaque para personagens negras, como a Aqualtune, presente na nova coleção da empreendedora.

Aqualtune foi uma mulher de linhagem real nascida no Congo no século XVII e descrita como avó de Zumbi dos Palmares, porém não há comprovação fiel se de fato ela existiu.

Existem poucos documentos oficiais que descrevem a congolesa, e os relatos da vida dela são perpetuados principalmente por meio de histórias orais. Conta-se que ela veio escravizada para o Nordeste brasileiro, assim como Agotimé, rainha-mãe de Benin, e é lembrada como uma mulher guerreira pela resistência à escravidão e pela capacidade de liderança.

Quando tem uma boneca daquela, vai ter toda uma história carregada. A gente escuta falar sobre Zumbi dos Palmares, mas quem foi ele? A gente não sabe. Quem foi Preta Simoa? A gente não sabe. As bonecas vêm trazendo isso para a criança. Se tenho uma criança que sabe da sua história, ela não vai ter problemas com a fase adulta. (…) Um tecido africano não é só um tecido, com ele conta-se a história do que se está produzindo. Digo muito que não vendo só uma boneca de pano, vendo uma história por trás.

Não é apenas uma forma de perpetuar um legado cultural e histórico de uma personagem praticamente invisível para os livros oficiais de história do Brasil. Virgínia Ramos usa a própria história enquanto mulher preta para empreender, prática cada vez mais comum no Estado.

"Há 15 anos venho trazendo a questão da boneca de pano. Já fiz várias coleções, como as princesas da Disney negras, fiz bonecas de orixás também. Há três anos temos o Quintal da Maloca. Vimos a necessidade de ter um espaço voltado para a cultura negra. Uma vez por mês, abrimos esse espaço para festas, com coco, toré, samba, funk, isso é nosso. Junto a isso, vem a gastronomia, onde fazemos acarajé, caruru, feijoada, algo bem nosso cultural", pontua.

A força de um Brasil genuinamente negro

A história de Virgínia é um dentre os tantos destaques econômicos e culturais que passam a ser financiados pelo edital Meu Afro Negócio. Essa é uma iniciativa do Governo do Ceará, por meio da Secretaria de Igualdade Racial (Seir), e foi sancionada no último dia 1º de novembro pelo governador Elmano de Freitas (PT).

Segundo o Governo, haverá a promoção "do empreendedorismo para a população negra, quilombola, de terreiro e ciganos de todo o Estado". O edital vai investir R$ 750 mil e vai beneficiar 100 empreendedores do Ceará. 

Eles receberão formação de gestão de negócios, financeira e de projetos, bem como instruções para marketing e etnodesenvolvimento. Além disso, os empreendedores ainda ganharão uma barraca de feira e um kit para os segmentos de artesanato, estética, cozinha, vestuário e gastronomia ancestral/cultura alimentar.

A iniciativa se justifica com base em dados divulgados pelo Sebrae tendo como fonte a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do quarto trimestre de 2023. Nela, fica evidenciado que 72,2% dos empreendedores cearenses são negros, o que representa mais de 815 mil pessoas no Ceará.

"A gente não consegue ter acesso aos bancos para conseguir os empréstimos. O edital ajuda muito a gente a conseguir esse suporte. A gente deixa de comprar um arroz ou um feijão para investir. Quando o edital chega, dá esse alívio que a empresa dê uma crescida e a potencialidade. E não é só ter o dinheiro, é também entender como gerencia esse negócio e faz esse capital de giro girar", reforça Virgínia Ramos.

Flecha da evolução: afroempreendedorismo é 'Geledé' para mulheres cearenses

A situação é vivenciada de perto por Mônica Fernandes, fundadora da Empoderarte, dinamizadora de impacto que desenvolve mulheres das classes C, D e E e seus negócios. Na empresa social, ela lida diretamente com o fomento de empreendedoras, sobretudo pardas e pretas, para reduzir questões econômicas e sociais.

"Somos focados no desenvolvimento do empreendedorismo como ferramenta para reduzir desigualdade de gênero e raça, reduzir violência doméstica e ampliar a autonomia econômica de mulheres, fortalecendo assim o ecossistema de impacto socioambiental no Estado", pontua.

Para Mônica, "o povo preto sustenta a economia desse País há anos e o nosso modo de fazer negócio e de fazer girar a economia é diferente". Isso porque os negócios gerados a partir de pessoas negras são parte de um modelo que deu certo na África e prospera com sabedoria e qualidade.

Praticamos uma economia decolonial, que foca na valorização dos saberes ancestrais, no bem comum e na coletividade acima das necessidades pessoais e individuais. Esse nosso olhar é muito de aquilombar as pessoas economicamente. A gente tem uma distribuição mais equitativa dos recursos, e eles são muito melhor aproveitados quando a gente tem a oportunidade de ter acesso a eles.

Legenda: Empreendedorismo negro no Brasil é bastante vocacionado no setor de serviços - Foto: Tânia Rêgo/EBC

Legenda: Boneca de pano da Aqualtune, avó de Zumbi dos Palmares. Incentivo ao afroempreendedorismo perpetua herança cultural.- Foto: Arquivo Pessoal 

Legenda: Bonecos de pano do Pequeno Príncipe Preto feitos pela artesã Virgínia Ramos - Foto: Arquivo Pessoal 

Legenda: Lançamento do edital Meu Afro Negócio no Palácio da Abolição contou com a presença de lideranças negras e discurso do governador Elmano de Freitas - Foto: Helene Santos/Governo do Ceará

Mônica Fernandes - Fundadora da Empoderarte

Ao longo do período de existência do Empoderarte, já foram atendidas mais de 6 mil mulheres, "a maioria delas gratuitamente", como destaca Mônica. Assim como em outras modalidades de microempreendedorismo, o acompanhamento das novas empresárias é feito de perto para garantir a subsistência dos novos negócios.

"A gente fica vendo a evolução e fazendo intervenções para ajudá-las. A gente tem já mensurado que 43% delas duplicaram ou triplicaram o seu faturamento em até quatro meses de participação dos nossos vários programas, projetos e ações. A gente consegue ver realmente a importância de ter um recorte personalizado, ensinando o empreendedor vulnerável a empreender do jeito que a gente sabe".

Assim como a sabedoria iorubá Geledé, que segundo o instituto brasileiro de mesmo nome designa uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente na África e que expressa o poder feminino sobre o desenvolvimento da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade, Mônica Fernandes atribui o crescimento econômico cearense ao papel de mulheres negras.

"A gente ainda tem muito o que lutar, porque mulheres negras empreendedoras, quando tentam acessar crédito, recebem mais 'não' do que outras mulheres. (…) Esse PIB já é tocado pelo crescimento dos nossos negócios, mas a gente precisa de muito mais apoio para aprender a faturar mais e gerar mais impacto financeiro na sociedade. Quando a gente muda a realidade do negócio de uma mulher, a gente muda a realidade da sociedade em volta dela", reflete.

A busca para que o apartheid socioeconômico se destrua

Além do lançamento do edital Meu Afro Negócio, foram lançados o II Festival Afrocearensidades e Projeto Quilombo Vivo, os três incluídos da programação do Governo do Estado em meio ao Novembro Negro, mês de compromisso com igualdade racial e a valorização da cultura afrobrasileira.

A secretária de Igualdade Racial do Ceará, Zelma Madeira, destaca a "força grande" dos povos negros em promover o empreendedorismo baseado nos saberes ancestrais, principalmente para trazer consciência socioeconômica para o Estado.

"Claro que se faz empreendedorismo muito por necessidade, a gente sabe da história do povo negro no Brasil e da dificuldade na dimensão do trabalho, a questão do desemprego e a capacidade de inventar e de criar. Esses grupos, além de trabalhar como trabalhadores autônomos, mais empreendedores, eles contribuem na edificação do Estado", avalia.

É isso que a gente quer, é que eles possam acessar a política de crédito, que eles possam ter formação, tenham condições de abrir e de dar continuidade aos seus negócios. É aprimorar a nossa transversalidade também com a Secretaria do Trabalho, tanto no acesso a crédito como formação para o trabalho.

Zelma Madeira

Secretária de Igualdade Racial do Ceará

Com o desenvolvimento transversal da economia por meio da própria realidade, a ideia dos lançamentos é evidenciar que questões ligadas às raízes culturais e étnicas vão muito além do mero entretenimento e são essenciais para o progresso da sociedade estruturada.

"A cultura é um caminho de desenvolvimento, geração de riqueza, de postos de trabalho, isso já acontece em muitas partes do mundo inteiro, inclusive em alguns estados brasileiros. A gente acredita muito que o fomento, o fortalecimento e o mapeamento da cadeia do ecossistema criativo no nosso estado pode contribuir para o crescimento do PIB, para geração de mais postos de emprego", pondera Luísa Cela, secretária de Cultura do Ceará.

Segundo a titular da pasta da cultura no Estado, entre agosto de 2023 e outubro de 2024, foram injetados "mais de R$ 100 milhões no fomento a projetos artísticos, dos quais 20% necessariamente para pessoas negras", possibilitando a inserção desse público na cadeia produtiva cearense.

"Isso reafirma e gera uma dinâmica econômica muito potente e limpa, é uma economia que gera pouco desgaste ambiental e que produz muita riqueza com bons salários, inclusive. O fortalecimento não é gasto, é investimento, é o fortalecimento da nossa cultura, da nossa economia, através dos setores criativos", decreta

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