O guardião dos tesouros arqueológicos da praia de Ponta Grossa mostra peças de cerâmica encontradas
Nada de mapas confusos marcados com um X. Um dos maiores tesouros cearenses tem endereço certo, em uma casa modesta na praia de Ponta Grossa, município de Icapuí (distante 202 km de Fortaleza). O valor, porém, não se assemelha ao das famosas moedas dos tesouros de piratas, é de outro tipo. Não compra mansões, mas materializa parte de nossa história, ajuda a compreender aspectos das origens e da trajetória dos povos do litoral cearense.
Cerâmicas antigas, provindas de outros continentes, ferramentas rudimentares de tribos nativas já desaparecidas e objetos náuticos são algumas das peças que compõem o acervo, construído ao longo dos últimos 30 anos por um ex-pescador insistente. Josué Crispim começou a recolher os vestígios da história aos pedacinhos, aqui e acolá, ainda adolescente, durante o tempo livre da labuta, em passeios pelas falésias de Ponta Grossa. Achava-os bonitos e interessantes, procurava sempre e, quando encontrava algo, levava para casa.
Fazia-o instintivamente, sem ter noção de que recolhia pedaços da história de sua comunidade. "A natureza não faz determinadas formas, eu observo as características dos objetos", explica Josué. As lascas de silexito são um bom exemplo - ao olhar desatento, podem parecer pedras quaisquer; um pouco mais de atenção permite perceber que as borda afiadas não surgiram naturalmente. Segundo Josué, eram usadas por comunidades indígenas do local como ferramentas, para cortar e raspar.
Às lascas seguem-se lâminas de machado de pedra polida, fragmentos de cerâmica do tipo Tupi-Guarani e Curimataú, fragmentos de louça portuguesa e inglesa, garrafas de cerâmica vitrificada holandesas até moedas do período colonial e fornilhos de cachimbos de origem indefinida, sem que tenha sido possível atribuí-las aos povos nativos ou aos colonizadores. A lista inclui ainda pingentes, anzóis, peças metálicas como dobradiças, talheres e ferrolhos.
Um conjunto significativo de materiais históricos, que hoje soma mais de 2 mil itens e já chegou a emocionar pesquisadores estrangeiros em visita a Ponta Grossa. Inversamente proporcional à sua importância, porém, são as condições de conservação e acondicionamento do acervo. Na casa nova de Josué, onde ele mora há cinco meses, as peças estão organizadas e são guardadas em caixas, bacias e sacos, mantidos em um quartinho.
Na antiga residência dele, a situação não é muito melhor. Por zelo do ex-pescador, algumas peças foram separadas em nichos de uma estante; outras não tiveram tanta sorte, permanecem espalhadas pelos cômodos. Tal qual um tesouro desconhecido, à espera do devido reconhecimento e de investimento que permitam sua conservação apropriada.
Documentário
Ainda em 2005, a riqueza do acervo chamou a atenção do cineasta e produtor cultural Ricardo Arruda, que passava por Icapuí à procura de informações sobre vestígios arqueológicos na região, como parte da pesquisa para um documentário. "Foi quando me falaram do ´cara que guardava caco velho´. Conheci o Josué e seu acervo de raridades e me encantei", recorda Arruda.
O passo seguinte foi elaborar um projeto de documentário, que chegou a ser contemplado pelo Ministério da Cultura, via Lei Rouanet), mas empacou na fase de captação de recursos. "Então decidimos fazer o filme com recursos próprios e apoio de algumas instituições, entre elas a Prefeitura de Icapuí. Lançamos uma série de quatro episódios chamada ´Os mistérios da Ponta Grossa´, disponível no YouTube", lembra Arruda (confira link no QR Code).
O documentário teve a contribuição de historiadores e arqueólogos, responsáveis pela análise dos materiais encontrados. O arqueólogo Roberto Airon (UFRN), por exemplo, chama a atenção para a riqueza dos "sítios de superfície" - áreas a céu aberto, em dunas e falésias, nas quais os vestígios aparecem espalhados pela areia - constantemente ameaçados pela passagem indevida de veículos 4x4.
Após o lançamento do documentário, o mergulhador e entusiasta da arqueologia Augusto Cesar Bastos sugeriu à equipe a organização de um registro impresso, com todas as informações da pesquisa e do acervo de Josué. O trabalho durou quatro anos e resultou no livro "Praia de Ponta Grossa - Vestígios arqueológicos da ocupação humana", lançado em agosto deste ano e organizado pelo próprio Augusto.
O próximo passo é a construção da Casa de Cultura Pindú, para abrigar o acervo. No terreno reservado à construção do equipamento também existem áreas com presença de material arqueológico. Em visita a um deles, foi possível perceber a abundância de vestígios arqueológicos - em pouco mais de dois minutos de caminhada mata adentro, Josué já segurava alguns itens nas mãos.
Segundo Josué, a escavação só pode ser feita com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - ou seja, todo o material que o ex-pescador reuniu até então foi encontrado na superfície. "Quando começarem a escavar vai aparecer muita coisa", prevê, animado. Após a construção da casa, Josué pretende encaminhar um projeto de escavação ao órgão.
Em reconhecimento ao seu trabalho de preservação do patrimônio cultural da comunidade, Josué, hoje com 53 anos, foi contratado pela Prefeitura de Icapuí como guardião dos sítios arqueológicos de Ponta Grossa. Definição bem melhor da importância de seu trabalho que o apelido de "velho que guarda cacos". "As pessoas não entendiam meu interesse por esses objetos, ficavam me chamando de doido, diziam que não valiam nada. Hoje, elas entendem mais a importância dessas peças para compreender nossa história", comemora.
Maior que a paixão de Josué por seu acervo e pela história de sua comunidade apenas a ética com que desempenha seu trabalho. "Já chegaram aqui oferecendo boas quantias de dinheiro, moto, barco equipado e outros tipos de ´pagamentos´. Ele nunca vendeu uma peça sequer", elogia Ricardo Arruda.
"Já vieram visitar o acervo pesquisadores estrangeiros que ficaram impressionados com o que temos aqui. Mas no próprio Estado as pessoas desconhecem. Pouco gente tem a sensibilidade para dar-lhe o devido valor", critica o produtor, que atualmente mora em Ponta Grossa e aguarda o desenrolar do projeto da Casa para dar continuidade às atividades de registro audiovisual ligadas ao patrimônio arqueológico do local.
"A ideia é, mais para frente, fazer outros documentários para incrementar o acervo da Casa. Também temos a ideia de capacitar pessoas para se movimentar nos sítios. É preciso toda uma técnica para saber onde pisar, como caminhar etc", planeja.
"Isso não é apenas parte da minha história, mas da comunidade, de todos os cearenses, dos índios, dos estrangeiros que passaram por aqui", complementa Josué.
ADRIANA MARTINS
ENVIADA A ICAPUÍ
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