SENADOR POMPEU - Romaria em memória dos flagelados completa 30 anos

Senador Pompeu. Na madrugada deste domingo, pouco antes da alvorada, milhares de peregrinos se concentram diante da Igreja matriz de Nossa Senhora das Dores, no Centro de Senador Pompeu, para participar de mais uma Caminhada da Seca, em sufrágio aos flagelados mortos no campo de concentração da seca de 1932. Quando partirem com destino ao cemitério da barragem do Açude Patu, estarão completando o ritual religioso pelo trigésimo ano consecutivo. Mais uma vez, motivados pela fé e pela devoção espontânea, idosos, adultos, na maioria mulheres, muitas descalças, jovens e até crianças, acompanham o sacerdote da Igreja Católica ao "Santuário da Seca", como o lugar ficou conhecido.

Há três décadas, homens, mulheres, crianças participam da caminha para lembrar as pessoas que sofreram durante a seca de 32. 

São cerca de seis quilômetros até o santuário. A cada um deles percorrido, uma rápida pregação em louvor das santas almas da barragem. Respeitosamente a multidão ouve algumas passagens do sofrimento de quem não sobreviveu no "curral da fome", como o lugar também ficou conhecido. Um momento de penúria ao saberem de famílias inteiras sepultadas em covas rasas por não conseguirem vencer dois inimigos mortais, a fome e a cólera. "Mas não se foram em vão", justifica a aposentada Maria Augusta Moreira. Mesmo passando dos 80 anos, há mais de duas décadas ela faz questão de participar passo-a-passo de todo o trajeto.

Quando chegarem ao cemitério, após duas horas de caminhada, os fiéis se concentram diante do palco onde o vigário da paróquia celebra tradicionalmente a Missa das Almas. Somente após o rito sagrado, o único portão do campo santo é aberto. Devotos das Almas da Barragem acendem velas e depositam pedras, simbolizando suas penitências, ao pé do monumento erguido para saudar as vítimas do flagelo da seca. Outros depositam suas oferendas e acendem velas do lado de dentro, junto aos jazigos, rezam na capelinha e se despendem. Em seguida, retornam para suas casas, em silencio.

Início

Segundo os devotos, essa história começou em 1982, em memória das vítimas da seca, mortas e sepultadas ao lado da barragem. A caminhada foi idealizada pelo padre Albino Donatti, à época vigário da paróquia de Nossa Senhora das Dores, a principal de Senador Pompeu. Desde então, a manifestação se repete no segundo domingo de novembro. A cada ano o movimento aborda uma questão social diferente. Desta vez o tema será "Caminhada ao campo santo do sertão, por cidadania e vida digna no semiárido". O objetivo é mobilizar a sociedade e chamar a atenção para a questão da convivência com o semiárido, com a seca, um fenômeno natural, que acontece desde muito antes dos primeiros europeus chegarem a essas terras.

Os participantes têm diversas formas para homenagear os mortos. Alguns depositam suas oferendas e acendem velas, junto aos jazigos, outros rezam na capelinha e se despedem. Em, seguida, voltam para suas casas

A explicação para a peregrinação, cada vez mais fortalecida, de acordo com o padre Roberto Costa, à frente da caminhada nos últimos sete anos, está no próprio povo, ao renovar suas esperanças e crença.

Com o passar dos anos, os milagres estão surgindo e a fé se fortalecendo. No entanto, além da religiosidade, a comunidade reflete sobre o episódio do campo de concentração.

Para o sacerdote, relembrá-lo a cada caminhada é alertar os governantes para que essa passagem nunca mais se repita. Esse é um dos principais propósitos da mobilização popular. Além da fé, a consciência e o desenvolvimento de políticas públicas para convívio com a seca e com o semiárido completam o ato religioso. Tem sido assim ao longo dessas últimas três décadas. Primeiro foi com o padre Abino Donatti, de 1982 a 1994; em seguida, o padre João Paulo, de 1995 a 1999; depois, Frei Duarte, em 2000 e 2001. Ele foi seguido pelo padre José Marques, à frente da Caminhada da Seca até 2004, quando foi substituído pelo pároco Roberto Costa, completando sete anos à frente do movimento católico. Este ano, a caminhada será guiada pelo padre João Melo dos Reis, pároco da freguesia de Nossa Senhora das Dores.

Conforme o advogado Valdecy Alves, um dos assíduos participantes da mobilização, depois de tantos anos, estiagens ao longo de várias gerações, ainda não se aprendeu a conviver com a seca. "Estamos vivenciando uma seca tão intensa quanto a de 1932, obviamente os efeitos danosos não têm a mesma intensidade em virtude de uma série de avanços, como construção de açudes de grande porte, perfuração de poços artesianos, estradas, carros-pipas, cisternas. Temos outra conjuntura que tem amenizado os problemas sociais gerados pela seca. Mas a população da região semiárida afetada pela seca ainda sofre muito. Principalmente por falta de políticas públicas voltadas para a convivência com a seca".

A barragem do Patu teve suas obras iniciadas no ano de 1919. Foram paralisadas em 1924. Nesse período foram construídos os casarões da barragem, a Vila dos Ingleses como é conhecida. A barragem, iniciada para amenizar a problemática da seca, foi palco da maior tragédia da região. Na grande seca de 1932, milhares de sertanejos foram atraídos para Senador Pompeu, com a promessa de trabalho e comida. A mesma barragem motivou a instauração do campo de concentração no local. Mais de 16 mil pessoas foram confinadas em uma área de pouco mais de 3km quadrados, milhares morreram, vítimas de doenças, maus tratos, higiene precária e fome.

Concentração

Aficionado pela História de sua terra natal, o advogado levantou outros fatos relacionados às Almas da Barragem. Além de Senador Pompeu, outros sete municípios também tiveram campos de concentração de flagelados. A mesma estratégia de confinamento de retirantes na seca de 1932 foi utilizada em Cariús, no Crato, Ipu, Quixadá, Quixeramobim e Fortaleza. Dos sete campos de concentração de flagelados que foram implantados pelo Governo naquele ano, o único que mantém viva a história é Senador Pompeu, por meio do patrimônio material, os casarões da barragem, o local foi usado para aprisionar os flagelados da seca e o patrimônio imaterial, que é a devoção popular pelas almas da barragem e a tradicional caminhada da seca.

Antes do amanhecer, a romaria parte da Igreja Matriz para o "Santuário da Seca", como ficou conhecido. Milhares de fiéis saúdam as santas almas do povo. São cerca de seis quilômetros até o local

A Caminhada da Seca é realizada sempre no segundo domingo de novembro. O cortejo tem início por volta das 5 horas. O campo santo está localizado numa colina com vista para as ruínas da Vila dos Ingleses e a represa pública concluída pelo Dnocs em 1987, com capacidade para 71.829.000 m³ e, atualmente com 51,89% de sua capacidade, conforme dados da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).

Por ironia, justamente onde milhares de flagelados morreram está a principal fonte de vida e riqueza da "Terra das almas da barragem".

Mais informações: Paróquia de Nossa Senhora das Dores. Centro - Senador Pompeu (88) 3449.0069 - Instituto Casarão, Centro - Senador Pompeu: (88) 9674.0110

ALEX PIMENTEL
COLABORADOR