UFC quer reintegração de terreno no Campus do Pici onde famílias moram há mais de 50 anos

As moradias se dividem em cinco vilas, de, aproximadamente, 40 metros de distância uma da outra.

Área onde UFC quer construir Parque Tecnológico é moradia de 58 famílias. — Foto: Helene Santos

A área já foi de administração da Base Aérea de Fortaleza e do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs).

Por João Duarte, G1 CE

A disputa judicial existente, há décadas, entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e famílias que residem no Campus do Pici reacendeu após oficiais de justiça voltarem a visitar as casas, na semana passada, intimando as pessoas a se manifestarem sobre o pedido de reintegração de posse impetrado pela UFC.

O objetivo da universidade é reaver os terrenos onde estão localizadas cinco vilas, com 58 famílias, para erguer no local um Parque Tecnológico (ParTec).

No último dia 18, segundo os moradores, oficiais de Justiça da 6ª Vara Federal no Ceará estiveram em algumas das casas entregando mandados com prazos para que as famílias possam contestar a solicitação. A família da agente de saúde Kaliane Rêgo, 39, segundo ela, está há três gerações residindo no local. Ela afirma que apenas parentes dos grupos originários ocupam as áreas.

“Sofremos constantes humilhações por aqui, até para reformar um compartimento de casa é uma luta. Tememos sair, pois muitos nasceram e se criaram aqui, e não têm para onde ir”, reflete.

As moradias se dividem em cinco vilas, de, aproximadamente, 40 metros de distância uma da outra.

A UFC, em 1993, já havia ingressado com ação de reintegração de posse do local. Na época, eram 21 ocupantes irregulares, de acordo com a instituição. O grupo, à época, venceu a causa. “Atualmente as ocupações continuam expandindo seu perímetro”, alegou, em nota, a UFC, que reforçou ainda estar cumprindo as determinações de dois entes federais: a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU).

A área na qual as casas estão edificadas fica dentro da UFC, mas já pertenceu ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). A instituição de ensino superior o adquiriu por usucapião (forma de se conseguir um bem pelo uso durante um determinado tempo). Em junho deste ano, a UFC deu entrada, junto à Justiça Federal, em uma ação reivindicatória das áreas ocupadas, com o objetivo de retirar os moradores.

A Defensoria Pública da União (DPU), informou, em nota, que já presta assistência jurídica às famílias desde julho de 2020. O órgão diz ainda que já requisitou a extinção do processo e a improcedência do pedido da UFC, pois, argumenta que a universidade já tinha conhecimento da existência das famílias no momento de recebimento do terreno.

Histórico

Na ação, a UFC alega que, em décadas passadas, funcionários do Dnocs foram autorizados por gestores a ocuparem galpões e a construírem habitações onde funcionava a antiga Base Aérea de Fortaleza. Segundo a UFC, “as moradias inicialmente abrigavam um grupo restrito de oito famílias e houve expansão desenfreada de construções irregulares”, o que teria promovido a ocupação também “por agregados e indivíduos totalmente alheios aos primeiros beneficiários da ação do Dnocs”.

A CGU realizou, em 2017, auditoria para averiguar ocupações irregulares e solicitou à UFC o imediato ingresso e impulsionamento dos processos de reintegração de posse, inclusive do primeiro processo, da década de 1990. O TCU também realizou uma ação em escala nacional de regularização imobiliária, chegando a notificar algumas universidades por omissão. Para a UFC, é necessário um resgate histórico do local.

Incerteza

Lucilene Paulo de Sousa, de 55 anos, reside no local há 53 anos. “A situação não é nenhuma surpresa, porque entra e sai reitor e a conversa é a mesma. Nós não estamos errados e nem somos um problema. Estamos na nossa casa. Viver isso logo próximo ao Natal é um verdadeiro presente de grego, mas vamos lutar pela nossa permanência. É só o começo”, reflete a dona de casa.

Alguns moradores afirmam “pensar no caso” de deixar a área se houver indenização. Mas, a UFC informou que esta somente poderá ser determinada em juízo. A aposentada Betedavis Ferreira, 74, chegou ao local aos 6 anos e conta “desejar ir para bem longe dali”, caso a ação se concretize.

“Não somos invasores, somos humanos, trabalhadores, que só querem sossego. Eu nem saberia viver fora daqui”, diz.

As vilas, por estarem em um dos campus da universidade, oferecem uma sensação bucólica e de segurança, ao contrário do que se observa pelos bairros cidade afora. Cinco famílias têm crianças autistas e relatam a liberdade experienciada por elas no local como um diferencial. Segundo os moradores, o campus detém diversas outras áreas com espaço e potencial para a criação do Parque Tecnológico.

Com ansiedade e hipertensão, Maria Rodrigues, de quase 78 anos, aponta a existência das variadas obras inacabadas dentro do campus. “Somos apenas famílias, e eles vêm 'bulir' com a gente”. O marido dela, Raimundo Ferreira, 77, relata a tamanha dificuldade em dormir à noite.

“Estamos aqui há 46 anos, não são 46 dias. São muitos janeiros. E agora temos de enfrentar essa situação, ainda mais num ano onde já enfrentamos uma pandemia”, lamenta.  

Parque Tecnológico

Conforme a UFC, o Parque Tecnológico “se encontra em fase de implantação, no Campus do Pici” e precisará usar o terreno ocupado pelas moradias. O empreendimento visa atrair empresas de base tecnológica, estimulando a cultura de inovação e empreendedorismo por estudantes e professores, em prol da comunidade acadêmica e da sociedade cearense. A área física a ser ocupada pelo Parque Tecnológico tem 229.301 metros quadrados.

Na ação, a UFC justifica que “o equipamento que demanda a imediata desocupação é de altíssima relevância institucional, e não pode prescindir de uma atuação imediata e urgente a fim de permitir à Universidade que se valha de seu patrimônio em prol, não só da comunidade acadêmica, mas da integralidade da sociedade cearense”.

https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/12/25/ufc-quer-reintegracao-de-terreno-no-campus-do-pici-onde-familias-moram-ha-mais-de-50-anos.ghtml