Esquema envolve barcos clonados

Documentos de embarcações eram alterados para supor que mais pescadores trabalhavam

Cais para lagosteiros às margens do rio Pirangi, entre Fortim e Beberibe FOTO: KLÉBER A. GONÇALVES A efetivação do Seguro-Desemprego do Pescador Artesanal (SDPA), o seguro-defeso, ocorre após uma combinação perfeita de dados entre o registro geral do pescador e a permissão de pesca para uma embarcação devidamente inscrita na Marinha do Brasil. Em miúdos, as informações do pescador devem constar no documento que autoriza o barco a pescar lagosta, por exemplo. Nesse caso, um barco pode ter até cinco lagosteiros em sua tripulação. No Ceará, pagamentos foram feitos a pescadores cuja embarcação coincidia com a de outros 31 trabalhadores. Está aí um exemplo de fraude. A embarcação Maísa, em Fortim, é apenas uma das dezenas de casos em que os documentos de permissão para o máximo de cinco pescadores eram estendidos, ilegalmente, para vários outros. O excedente era formado pelos pescadores fantasma, geralmente requerendo o benefício federal a partir de outros estados. No mercado paralelo, a compra de título de embarcação em nome de laranjas custa R$ 1.200, em média. Enquanto isso, donos de embarcações reclamam da dificuldade de encontrar pescadores porque muitos não querem ir ao mar, se já recebem benefício. No Ceará, a descoberta da fraude antes do pagamento permitiu o indeferimento do pedido. Mesmo assim, como se nada de errado houvesse, donos de embarcação procuravam o Sine-IDT, em Fortaleza, devido ao atraso no recebimento. "Questionávamos por que a embarcação tinha tantos pescadores cadastrados na tripulação. Muitos não diziam saber como se deu, mas ficava claro que não poderíamos liberar a concessão de seguro numa situação dessa", afirma Júlia Colares, coordenadora de seguro-desemprego do Sistema Nacional de Emprego/Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (Sine-IDT). A Lei Geral da Pesca, instituída em 2009, estabelece que "toda pessoa, física ou jurídica, que exerça atividade pesqueira bem como a embarcação de pesca devem ser previamente inscritas no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP). A auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entre janeiro de 2012 e junho de 2013, em vários estados brasileiros, permitiu identificar irregularidade em 1.646 cadastros de proprietário de embarcação. Os CPFs estavam em situação não regular na base da Receita Federal. Em relação à base da embarcação, o nome da mãe do proprietário está em branco em 1.869 registros e sequer consta a data de nascimento do dono em nenhum dos registros. Para o TCU, há indícios de que várias pessoas usaram o mesmo CPF. Controle Para investigar a inexistência de registro e validação dos dados da embarcação, em 2014, a área técnica do MTE ficou detida em procedimentos para aperfeiçoar o controle e tamanho dos barcos, a quantidade de embarcados e número de CPF do proprietário e dos pescadores. No entanto, trata-se de questão controversa, uma vez que o Ministério Público, em alguns estados, permite a quantidade de embarcados acima do limite previsto em função da rotatividade de pescadores. Além disso, existem casos de defesos que admitem a pesca com ou sem o uso de embarcações. No intuito de coibir a duplicidade de dados, Ministério Público do Trabalho, Sine-IDT e Ministério Público Estadual passaram a fiscalizar, em uma força-tarefa, barco a barco. Um olho no papel e outro no mar ou no rio fizeram o grande diferencial no modo de fiscalização no Ceará que tem evitado fraudes. A fórmula encontrada foi não mais se basear apenas no documento de cadastro. A conferência passou a ser olho no olho. Promotores de Justiça, técnicos ministeriais, procuradores do trabalho e Júlia Torres Colares, do Sine-IDT em Fortaleza, entraram em campo visitando a costeira e beira de rios e açudes. "Encontramos muitos casos dentro da legalidade, mas também outros em situação alarmante: o barco antigo, feito sucata enterrada na areia, mas cadastrado como em atividade. Aí eu pergunto: 'como o senhor diz que esse barco está pescando lagosta com cinco pescadores?'", conta Júlia Colares. Em Icapuí, barcos que realizavam a pesca predatória da lagosta, por meio de marambaia e mergulho, manejos proibidos pela legislação, eram cadastrados como artesanais, cujo único instrumento permitido é o manzuá. "Tem alguns donos, em Icapuí, que escondem a embarcação e dizem que estão no mar para os fiscais do Ministério Público", afirma um pescador que tem a identidade preservada. Ele é uma das pessoas ouvidas pelo Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Estadual. Outra das fraudes ocorreria na ampliação do barco para comportar mais um pescador e, dessa forma, mais seis parcelas do seguro. "Havia casos de pessoas que já morreram colocadas entre os pescadores da tripulação", acrescenta Júlia Colares. Vistoria surpresa O desafio de fiscalizar as embarcações no Ceará se explica com um dado: 62% de todos os barcos de pesca da lagosta no Brasil se encontram neste Estado. Alertas como esse têm servido de embasamento para a atividade do MPT na zona costeira cearense. Diante dos requerimentos de seguro-defeso, foi realizada uma vistoria surpresa em embarcações, que, tradicionalmente, estão na lista de segurados para receber o benefício. A constatação seguiu a mesma linha: 166 embarcações fora dos requisitos. Do total, 30 estavam com a titulação (fornecida pela Marinha) fora do prazo de validade; 19 tinham sido transferidas para outras jurisdições; 55 estavam fora de tráfego ou em processo de retirada. Seis foram reprovadas, sete não tinham navegabilidade, seis não possuíam cadastro e 43 simplesmente não foram encontradas. Se todos esses barcos que requereram cadastro no seguro-desemprego tivessem sido realmente contemplados, o Governo Federal teria pago, somente no Ceará, nada menos que o montante de R$ 3,5 milhões somente no ano de 2014. SAIBA MAIS A titulação das embarcações pesqueiras é realizada pela Marinha do Brasil, que emite documento de inscrição de embarcação; A Secretaria Estadual de Pesca, em cada Unidade Federativa, atua na concessão de licença-embarcação para atividade pesqueira; NA MARINHA, a Capitania dos Portos é a unidade da Marinha que realiza a vistoria nas colônias de pescadores, conferindo também a retirada de tráfego Arqueação é a medida do volume interno de uma embarcação. Na concessão de licença de pesca, é estabelecido um limite de tripulação A lagosta é o principal objeto de pesca de embarcações para essa atividade no Nordeste, com máximo de até cinco pescadores por barco A adulteração de documentos é feita, em geral, ao se incluir no cadastro mais pescadores do que o número real na atividade Para evitar a fiscalização , os fraudadores, escondem as embarcações usando a alegativa de elas que estão em atividade no mar Tecnologia GPS é fornecida pelo Ministério de Pesca no Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite Tradição da pesca da lagosta é mais comum no Ceará, onde se concentram 62% das embarcações licenciadas para essa atividade Melquíades Júnior Repórter