Falta de cuidado, de amor, descuido, desatenção, displicência. Todos esse atos podem caracterizar negligência quando se refere a crianças, adolescentes ou a um adulto com limitações físicas e psicológicas. Este tipo de violência lidera as denúncias recebidas pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), no Ceará. De janeiro a junho deste ano, das 1.974 denúncias, 776 foram de negligência familiar, o que corresponde a 40% do total. Destes, 259 era crianças de zero a 11 anos.
Em segundo lugar, de acordo com o órgão, vem a violência física com 512 denuncias, em terceiro está a violência psicológica com 385 registros, seguido do abuso sexual com 224 denuncias e da exploração sexual com 36 registros.
E foi por conta da negligência da mãe e da avó que a pequena Vitória, dois anos, moradora do Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, faleceu na tarde da última segunda-feira, com suspeita de envenenamento, no Hospital Frotinha de Messejana. A dona de casa Cristina Barbosa, vizinha da família, socorreu a criança e a levou para o hospital. A mesma conta que a criança não tinha sequer a certidão de nascimento e quem passava a maior parte do tempo cuidando dela era um tia de apenas oito anos.
Segundo Cristina, tanto a mãe, uma adolescente de 16 anos, quanto a avó têm envolvimento com drogas e nunca estavam em casa. "Era uma criança cuidando de outra. Quase todos os dias, a maior vinha aqui pedir comida, pois dizia que na casa delas não tinha nada. Eu ficava com muita pena e sempre ajudava", conta. A vizinha disse, ainda, que o pai da criança havia sido morto também por envolvimento com o tráfico de drogas e a avó paterna tentava a guarda da menina, mas não conseguia.
A mãe e a avó de Vitória abandonaram a casa no Conjunto Palmeiras, levando a menina de oito anos, e estão desaparecidas.
De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), Vitória de fato deu entrada, segunda-feira, no Frotinha de Messejana, com suspeita de envenenamento, mas não há ainda como confirmar a causa da morte antes do laudo oficial do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO).
Os registros de negligência familiar só crescem nos últimos dois anos no Estado. Se compararmos os 227 casos de negligência registrados pelo Creas de janeiro a junho de 2010 com as denúncias no igual período deste ano (776), é possível verificar um aumento de 240%.
Abandono
Segundo Regiana Ferreira Nogueira, coordenadora do Creas, 95% destes casos envolvem crianças e adolescentes. Para ela, a negligência é pior do que o abandono, pois, quando os responsáveis são negligentes, eles privam a criança de todos os seus direitos. Já no abandono, o Estado se torna responsável.
Regiana explica que o melhor a fazer nestes casos é denunciar para o conselho tutelar do bairro ou para o Creas. De acordo com ela, a denúncia pode ser feita de forma anônima e só a partir dela é os profissionais poderão acompanhar os casos. Assim, acredita que o número de negligências deve ser bem maior, já que muitos têm medo de represálias e evitam comunicar os atos de violência contra crianças.
A coordenadora ressalta que, após a denúncia, uma assistente social faz visitas à residência e, se identificada a violência, a família é encaminhada para a rede engajamento de auxílio. Se a negligência continuar, os pais podem ter o poder familiar destituído e a criança é encaminhada para a adoção.
Mais informações
Para denunciar qualquer tipo de violência, ligue para o Creas (0800 285 1407) ou para o Disque 100
80% são vítimas de descuidos
Alimentar um filho é mais que um ato de amor, é um ato de responsabilidade. Contudo, não são todos os pais que pensam desta maneira. A consequência disso é uma grande demanda de crianças desnutridas sendo acolhidas pelo Instituto de Promoção da Nutrição e do Desenvolvimento Humano (Iprede) por conta da negligência familiar. De acordo com o pediatra Sulivan Mota, presidente da entidade, 80% dos casos que chegam na entidade são gerados por esse tipo de violência.
"A negligência é comum e está sempre associada à violência. Situação que leva problemas para a vida toda. Se a violência é cruel e negligencia, é devastadora", ressalta o médico, acrescentando que é possível e fácil identificar quando a desnutrição é gerada pela ausência de alimento e não por doença.
Além disso, conforme ele, o primeiro sinal de que o problema é negligência e não miséria é quando os pais apresentam uma situação adequada de nutrição, mas a criança está desnutrida.
Ainda de acordo com Sulivan Mota, ao ingressar na entidade fora os exames de saúde básicos feitos na criança desnutrida, a família passa por um inquérito alimentar para que seja possível identificar as causas da desnutrição. "É fácil descobrir quando o pai ou a mãe são negligentes. Sempre há um vizinho que também é nosso cliente ou um amigo da família que frequenta a entidade e relata", destaca.
Causas
De acordo com o pediatra, entre os diversos fatores que causam a desnutrição estão a extrema pobreza e a drogadição dos pais. "A miséria e a droga conseguem destruir qualquer relação, mesmo a mais sublime, que é de mãe e filho. A extrema pobreza leva ao comportamento de sobrevivência, onde o indivíduo só olha para si e não vê o outro, mesmo que seja um filho", destaca.
Na tentativa de reverter situações de negligência, Sulivan ressalta que o Iprede tem uma parceria com os conselhos tutelares que realizam o acompanhamento dessas famílias. A entidade também realiza um trabalho psicossocial para fortalecimento dos laços familiares.
"Trabalhamos a mãe isolada da criança e, depois, os dois juntos. Oferecemos oportunidade de profissionalização da mulher e inserção no mercado de trabalho", ressalta o médico.
KARLA CAMILA
REPÓRTER
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