Por BBC - 21/12/2025
Rede criminosa desviou milhões arrecadados para crianças com câncer. — Foto: Chance Letivka via BBC
Altos valores foram aparentemente levantados para crianças gravemente doentes, que nunca receberam o dinheiro.
Importante: o conteúdo desta matéria pode ser perturbador para alguns leitores.
Um menininho olha para a câmera. Seu rosto é pálido e ele não tem cabelo.
"Tenho sete anos de idade e tenho câncer", diz ele. "Por favor, salve minha vida e me ajude."
Khalil aparece no alto desta reportagem, em imagem retirada do vídeo. Ele não queria fazer a gravação, segundo sua mãe, Aljin.
Pediram a ela que raspasse a cabeça do menino e uma equipe de filmagem o colocou em um cenário falso, pedindo à família que fingisse que era seu aniversário. Eles entregaram a ele um roteiro para ler e recitar em inglês.
Aljin conta que Khalil não gostou quando a equipe colocou cebolas picadas ao lado dele e mentol sob seus olhos para fazê-lo chorar. A mãe concordou porque, embora fosse uma encenação, Kha-lil realmente tinha câncer.
Eles disseram a Aljin que o vídeo ajudaria a levantar dinheiro para melhorar o tratamento da criança. E, de fato, ele levantou US$ 27 mil (cerca de R$ 147,5 mil), segundo uma cam-panha que encontramos em nome de Khalil.
Mas a informação que Aljin recebeu foi que a campanha teria sido um fracasso e o montante não foi pago. Ela ganhou apenas o cachê de filmagem de US$ 700 (cerca de R$ 3,8 mil) por aquele dia. E, um ano depois, Khalil morreu.
Em todo o mundo, pais desesperados de crianças doentes ou à beira da morte são explorados por campanhas de golpes online, segundo descobriu o Serviço Mundial da BBC.
O público oferece dinheiro para as campanhas, que afirmam levantar fundos para o tratamento que irá salvar as suas vidas.
Mas a BBC identificou 15 famílias que afirmaram terem recebido pouco ou nenhum di-nheiro dos fundos levantados. Muitas delas sequer sabiam que as campanhas haviam sido publicadas, mesmo tendo passado pelo doloroso processo de filmagem.
Nove das famílias com quem conversamos participaram de campanhas que parecem ter sido pro-duzidas pela mesma rede de golpes. Elas afirmam que nunca receberam nenhum valor dentre os US$ 4 milhões (cerca de R$ 21,8 milhões) aparentemente arrecadados em nome delas.
Um informante da rede contou que eles procuravam "crianças bonitas" que "precisavam ter entre três e nove anos de idade... sem cabelo".
Identificamos um participante chave do golpe: um homem israelense que mora no Canadá, cha-mado Erez Hadari.
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A investigação
Nossa investigação começou em outubro de 2023. Um anúncio perturbador no YouTube chamou nossa atenção.
"Não quero morrer", diz, soluçando, uma menina ganense chamada Alexandra. "Meus tratamentos são muito caros."
Uma campanha de levantamento de fundos para ela aparentemente levantou cerca de US$ 700 mil (cerca de R$ 3,8 milhões).
Observamos no YouTube outros vídeos de crianças doentes de todo o mundo e a semelhança entre eles era surpreendente.
Habilmente produzidos, os vídeos pareciam ter levantado enormes somas de dinheiro. Todos eles transmitiam um senso de urgência, usando linguagem emotiva.
Por isso, decidimos investigá-los mais a fundo.
As campanhas aparentemente com maior alcance internacional eram promovidas por uma organização chamada Chance Letikva ("Chance de Esperança", em tradução livre), registrada em Israel e nos Estados Unidos.
Foi difícil identificar as crianças apresentadas. Usamos geolocalização, redes sociais e software de reconhecimento facial para encontrar suas famílias, em lugares distantes como a Colômbia e as Filipinas.
Também foi difícil saber ao certo se o dinheiro total arrecadado, exibido nos websites das campanhas, era verdadeiro. Mas nós doamos pequenos valores para duas dessas campanhas e observamos os valores totais aumentarem pelos mesmos montantes.
Também conversamos com uma pessoa que conta ter doado US$ 180 (cerca de R$ 983) para a campanha de Alexandra. Ela recebeu inúmeros pedidos de novas doações, todos eles escritos como se fossem enviados pela menina e pelo seu pai.
Nas Filipinas, Aljin Tabasa contou que seu filho Khalil ficou doente pouco depois de completar sete anos de idade.
"Quando descobrimos que era câncer, senti meu mundo inteiro desabar", ela conta.
Aljin conta que o tratamento no seu hospital local na cidade de Cebu era lento e enviou mensa-gens de texto para todas as pessoas que ela conseguiu imaginar, em busca de ajuda.
Uma dessas pessoas a colocou em contato com um empresário local chamado Rhoie Yncierto. Ele pediu um vídeo de Khalil que, agora, ela percebe que foi basicamente um teste.
Outro homem veio do Canadá em dezembro de 2022 e se apresentou como "Erez". A mãe conta que ele pagou o cachê de filmagem adiantado, prometendo mais US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8,2 mil) por mês, se o filme gerasse grandes valores em doações.
Erez dirigiu o filme de Khalil em um hospital local, pedindo tomadas e mais tomadas. A filmagem levou 12 horas, segundo Aljin.
Meses se passaram e a família afirma que eles ainda não sabiam quais foram os resultados do vídeo.
Aljin enviou uma mensagem de texto para Erez, que respondeu a ela que o vídeo "não teve sucesso".
"Por isso, entendi que o vídeo não rendeu dinheiro", ela conta.
Mas nós dissemos a ela que a campanha aparentemente recebeu US$ 27 mil (cerca de R$ 147,5 mil) até novembro de 2024 e ainda estava online.
"Se eu soubesse o dinheiro que levantamos, não posso deixar de imaginar que, talvez, Khalil ainda estivesse aqui", lamenta Aljin. "Não entendo como eles puderam fazer isso conosco."
Questionado sobre sua participação na filmagem, Rhoie Yncierto negou ter orientado as famílias a raspar a cabeça dos filhos para a filmagem. Ele afirma não ter recebido pagamento por recrutar as famílias.
Yncierto declarou "não ter controle" sobre o que acontecia com o dinheiro e que não mante-ve contato com as famílias depois da filmagem.
Quando dissemos a ele que elas não receberam nenhuma doação das campanhas, ele afirmou ter ficado "perplexo" e que "lamentava muito pelas famílias".
Os documentos de registro da Chance Letikva não mencionam nenhuma pessoa com o nome Erez.
Mas duas das suas campanhas que investigamos também haviam sido promovidas por outra organização chamada Walls of Hope, registrada em Israel e no Canadá. E os documentos mencio-nam que seu diretor no Canadá se chama Erez Hadari.
Suas fotos online o mostram em eventos religiosos judaicos nas Filipinas e nas cidades america-nas de Nova York e Miami. Mostramos as imagens para Aljin, que declarou que aquela era a mesma pessoa que ela havia conhecido.
Vários continentes
Perguntamos a Hadari sobre seu envolvimento em uma campanha nas Filipinas, mas não recebemos resposta.
Visitamos outras famílias que tiveram campanhas organizadas por Hadari ou relacionadas a ele. Uma delas mora em uma comunidade indígena remota na Colômbia e outra, na Ucrânia.
Como no caso de Khalil, intermediários locais entraram em contato para oferecer ajuda. As crianças foram filmadas e forçadas a chorar ou fingir lágrimas por um valor fixo, mas nunca mais receberam dinheiro.
Em Sucre, no noroeste da Colômbia, Sergio Care conta que, inicialmente, ele recusou a ajuda.
Ele conta ter sido procurado por uma pessoa chamada Isabel, que ofereceu assistência financeira quando sua filha de oito anos de idade, Ana, foi diagnosticada com um tumor cerebral maligno.
Mas Isabel o procurou no mesmo hospital que tratava Ana, segundo ele. Ela estava acompanhada por um homem que disse que trabalhava para uma ONG internacional.
A descrição do homem fornecida por Care coincide com a de Erez Hadari. Mostramos uma foto e ele o reconheceu na imagem.
"Ele me deu esperança", relembra Care. "Eu não tinha dinheiro para o futuro."
As exigências impostas à família não terminaram com a filmagem.
Isabel continuou ligando, segundo Care, exigindo mais fotos de Ana no hospital. E, quando ele deixou de responder, Isabel começou a entrar em contato direto com Ana, por mensagens de voz que foram ouvidas pela BBC.
Ana disse a Isabel que não tinha mais fotos para enviar. A resposta foi: "Isso é muito ruim, Ana, realmente muito ruim."
Em janeiro de 2025, Ana (agora, totalmente recuperada) tentou descobrir o que aconteceu com o dinheiro prometido.
"Aquela fundação desapareceu", respondeu Isabel, em uma mensagem de voz. "O seu vídeo nunca foi carregado. Nunca. Nada foi feito com ele, está ouvindo?"
Mas a BBC encontrou o vídeo online e, em abril de 2024, ele aparentemente havia levantado cerca de US$ 250 mil (cerca de R$ 1,4 milhão).
Em outubro, convencemos Isabel Hernández a conversar com a reportagem por um link de vídeo.
Ela explicou que um amigo de Israel a apresentou a uma pessoa oferecendo trabalho para "uma fundação" que procurava ajudar crianças com câncer. Ela se recusou a informar para quem trabalhava.
Hernández declarou ter sido informada que apenas uma das campanhas que ela ajudou a organizar foi publicada e que não havia tido sucesso.
Mostramos a ela que, na verdade, duas campanhas haviam sido publicadas. E que uma delas aparentemente levantou mais de US$ 700 mil (cerca de R$ 3,8 milhões).
"Preciso pedir desculpas às famílias", respondeu ela. "Se eu soubesse o que estava acontecendo, não teria feito algo assim."
Na Ucrânia, descobrimos que a pessoa que se apresentou à mãe de uma criança doente, na verdade, era contratada do local de filmagem do vídeo da campanha.
Tetiana Khaliavka organizou uma filmagem com Viktoriia, de cinco anos, na clínica Angelholm, em Chernivtsi, no sudoeste do país. Ela tem câncer de cérebro.
Uma postagem no Facebook, com link para a campanha da Chance Letikva, mostra Viktoriia e sua mãe Olena Firsova, sentadas em uma cama.
"Vejo seus esforços para salvar minha filha e isso realmente comove a todos nós", diz a legenda. "É uma corrida contra o tempo para levantar o dinheiro necessário para os tra-tamentos de Viktoriia."
Olena conta que nunca escreveu e nem mesmo disse estas palavras. E que não tinha ideia de que a campanha havia sido publicada.
Aparentemente, ela levantou mais de 280 mil euros (cerca de R$ 1,8 milhão).
Soubemos que Khaliavka era encarregada de publicidade e comunicações da Angelholm.
A clínica declarou recentemente à BBC que não aprovou a filmagem nas suas instalações e acrescentou que "a clínica nunca participou, nem apoiou nenhuma iniciativa de levantamento de fundos criada por nenhuma organização".
A Angelhom afirma ter dispensado Tetiana Khaliavka.
Firsova nos mostrou o contrato que foi apresentado para que ela assinasse.
Além do cachê de filmagem da família por aquele dia, de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8,2 mil), o contrato afirma que ela receberia US$ 8 mil (cerca de R$ 43,7 mil) quando fosse atingido o objetivo da campanha. Mas o valor do objetivo foi deixado em branco.
O contrato mostra um endereço da Chance Letikva em Nova York, nos Estados Unidos. Mas o website da organização mostra outro endereço, em Beit Shemesh, a cerca de uma hora de Jeru-salém.
Nós viajamos para os dois locais, mas não encontramos nenhum sinal da entidade. E também descobrimos que a Chance Letikva aparentemente seria uma dentre muitas organizações similares.
O homem que filmou a campanha de Viktoriia contou à nossa produtora (que se apresentou como amiga de uma criança doente) que trabalha para outras organizações parecidas.
"Cada vez, é uma diferente", contou o homem, que se apresentou como "Oleh". "Odeio colocar desta forma, mas eles trabalham meio que como uma linha de produção."
"Cerca de uma dúzia de empresas similares" pediram "material", afirma ele, indicando os nomes de duas delas: Saint Teresa e Little Angels, ambas registradas nos Estados Unidos.
Verificamos os documentos de registro das organizações e encontramos novamente o nome de Erez Hadari.
O que não ficou claro é para onde foi o dinheiro levantado para as crianças.
Para descobrir, mais de um ano depois da filmagem de Viktoriia, sua mãe ligou para Oleh, que parece se apresentar online como Alex Kohen.
Pouco tempo depois, alguém da Chance Letikva ligou para dizer que as doações foram usadas para pagar a publicidade, segundo ela.
É a mesma informação que Hadari forneceu a Aljin, a mãe de Khalil, quando ela o confrontou por telefone.
"Existe o custo da publicidade. Por isso, a companhia perdeu dinheiro", disse Hadari a ela, sem fornecer evidências que confirmassem a informação.
Especialistas em operações de caridade informaram que a publicidade não deve representar mais de 20% do total levantado pelas campanhas.
Uma pessoa que trabalhou anteriormente para recrutar crianças para as campanhas da Chance Letikva explicou como os casos apresentados são escolhidos, sob condição de anonimato.
Eles afirmaram que recebiam pedidos para que visitassem clínicas oncológicas. "Eles sempre procuravam crianças bonitas com pele branca", segundo nos contaram.
"A criança precisava ter entre três e nove anos de idade. Elas precisavam falar bem. Elas precisavam não ter cabelo."
"Eles me pediram fotos, para ver se a criança estava certa, e eu as enviava para Erez."
A pessoa que fez a denúncia nos contou que Hadari enviava a foto para outra pessoa em Israel, cujo nome nunca foi informado.
Em relação ao próprio Hadari, tentamos fazer contato com ele em dois endereços no Canadá, mas não conseguimos encontrá-lo. Ele respondeu a uma mensagem de voz que enviamos, perguntan-do sobre o dinheiro que, aparentemente, ele estava levantando.
Hadari afirmou que a organização "nunca foi ativa", sem especificar qual. Ele não respondeu a outra mensagem de voz, contendo todas as nossas questões e afirmações.
As campanhas criadas pela Chance Letikva para as duas crianças que morreram (Khalil e um menino mexicano chamado Héctor) aparentemente ainda aceitam doações.
A filial da Chance Letikva nos Estados Unidos parece estar relacionada a uma nova organização chamada Saint Raphael, que produziu outras campanhas. Pelo menos duas delas foram aparentemente filmadas na clínica Angelholm, na Ucrânia, como se pode ver pelos uniformes dos funcionários e no painel de madeira característico da clínica.
Olena Firsova, a mãe de Viktoriia, afirma que sua filha foi diagnosticada com outro tumor cerebral. Ela conta ter se indignado com as descobertas da nossa investigação.
"Quando sua filha está... à beira da morte, surge alguém e ganha dinheiro com isso. É imoral. É dinheiro de sangue."
A BBC entrou em contato com Tetiana Khaliavka e Alex Kohen, além das organizações Chance Letikva, Walls of Hope, Saint Raphael, Little Angels e Saint Teresa, convidando a todos a responder às declarações apresentadas contra eles. Não houve resposta de nenhuma das partes.
A Autoridade das Corporações de Israel, que supervisiona as organizações sem fins lucrativos do país, afirmou que, se houver evidências de que os fundadores usam as entidades para "encobrir atividades ilegais", seu registro em Israel pode ser negado e o fundador pode ser proibido de trabalhar naquele setor.
O órgão regulador britânico, a Comissão da Caridade, aconselha às pessoas que desejarem fazer doações para entidades beneficentes que verifiquem se as associações estão registradas e entrem em contato com o órgão regulador apropriado de campanhas de levantamento de fundos, em caso de dúvida.
Com colaboração de Ned Davies, Tracks Saflor, José Antonio Lucio, Almudena Garcia-parrado, Vitaliya Kozmenko, Shakked Auerbach, Tom Tzur Wisfelder, Katya Malofieieva, Anastasia Kucher, Alan Pulido e Neil McCarthy.
https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/12/21/rede-criminosa-desviou-milhoes-arrecadados-para-criancas-com-cancer-revela-investigacao-da-bbc.ghtml