Estudo associa uso de analgésico na gravidez a crianças hiperativas

Levantamento com 64 mil mulheres sugere que o paracetamol, considerado o analgésico mais seguro para gestantes, aumenta risco de ter filho com comportamento hiperativo

Mulheres que usaram o analgésico paracetamol durante a gravidez têm mais chances de ter filhos com comportamentos associados ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. A desordem, conhecida como TDAH, é caracterizada pela dificuldade de manter a concentração, atitudes impulsivas e comportamento irrequieto, fatores que podem prejudicar o desempenho escolar. O novo estudo foi divulgado hoje na edição pediátrica de uma das publicações científicas mais importantes do mundo, o Jornal da Associação Médica Americana, o Jama.

A pesquisa é importante porque o paracetamol, também chamado acetaminofeno, é considerado atualmente o analgésico mais seguro para mulheres grávidas. Um levantamento feito com americanas em 2005 mostra que o analgésico é o mais usado pelas gestantes:  65% tomaram durante a gravidez para tratar sintomas como febre e dores. "Precisamos de mais pesquisas para provar a relação do paracetamol com o TDAH", disse a ÉPOCA o epidemiologista dinarmaquês Jørn Olsen, pesquisador da Universidade de Aarhus e um dos autores do novo estudo. "Mas mulheres grávidas devem evitar o medicamento a não ser que ele realmente seja muito necessário".

A publicação de uma pesquisa como essa tem um potencial enorme para causar angústia entre nós, os pacientes da história. Neste caso, mulheres grávidas,  homens prestes a se tornarem pais ou filhos inclinados a culpar a mãe pela dificuldade de prestar atenção na aula. ÉPOCA ouviu especialistas e os próprios autores da pesquisa para entender como os resultados desse estudo afetam nossa vida. Para isso, é preciso interpretar levantamentos como esse sob alguns aspectos. Vamos lá:

1) O que diz o estudo?
A nova pesquisa sugere que o risco é maior quando o paracetamol é usado tanto no segundo quanto no terceiro trimestre. Mulheres que tomaram o medicamento nesse período tinham uma chance 75% maior de ter filhos que apresentaram comportamentos característicos da hiperatividade. Para as gestantes que usaram o analgésico no primeiro trimestre, a chance era 9% maior. O risco também cresce conforme a duração do uso. Tomar o paracetamol por uma semana aumentava a chance em 9%. Por mais de 20 semanas, o risco era 92% maior.

Os pesquisadores usaram uma base de dados montada na Dinamarca durante os anos de 1996 e 2002, com informações de mais de 64 mil gestantes. Eles cruzaram o relato de uso de paracetamol durante a gravidez com o resultado de um questionário aplicado às mães sete anos após o nascimento das crianças. As perguntas tinham como objetivo diagnosticar comportamentos característicos da hiperatividade. Eles também cruzaram os dados com um sistema de registros nacional, que guarda informações sobre a prescrição de medicamentos para a TDAH, como a ritalina, e o número de diagnósticos feitos para o transtorno de conduta hipercinética, uma espécie de hiperatividade mais grave, caracterizada por impulsividade extrema. As chances de ter um filho que tomava medicamento para TDAH ou que tinha sido diagnosticado com transtorno hipercinético também aumentavam de acordo com o uso prolongado de paracetamol durante a gravidez e com o uso nos dois últimos trimestres da gestação.

2) O estudo é confiável?
O estudo é considerado consistente porque analisou uma base de dados grande, o que diminui o risco de um achado incidental parecer prevalente se a amostra for pequena. Outro ponto forte é a solidez das informações. Como o relato de uso do paracetamol foi feito  no momento da gravidez e não anos depois, há menos chances de as mães não se lembraram ao certo do uso ou de serem induzidas a relatar um consumo maior ou menor do medicamento, o que distorceria os resultados. Os pesquisadores só não conseguiram uma informação importante: a dose ingerida pelas mães cada vez que elas usaram o analgésico.

3) Por causa deste estudo, os médicos não devem indicar mais o paracetamol para grávidas?
Apesar da consistência da pesquisa, especialistas que analisaram o estudo a pedido do Jama afirmam que o levantamento não é suficiente para mudar a conduta médica. "Esse novo achado deve ser visto com cautela e não deve mudar a prática médica", disse a ÉPOCA a psicóloga britânica Kate Langley, pesquisadora da Universidade de Cardiff e uma das editorialistas do Jama responsáveis por analisar o novo estudo. “São resultados preliminares que requerem uma investigação mais profunda para verificar se realmente existe uma associação de causa e efeito entre tomar paracetamol na gravidez e desenvolver TDAH na infância.”

Para que a conduta médica seja revista, são necessários outros estudos que reproduzam o achado e pesquisas que consigam estabelecer uma relação de causa (tomar o paracetamol durante a gravidez) e efeito (desenvolver TDAH na infância). O estudo recém-divulgado é considerado de boa qualidade, mas não responde a essa pergunta por causa do tipo de método usado pelos pesquisadores. Ele sugere apenas haver uma associação entre os dois fatores. Talvez, haja uma conexão de verdade. Talvez, seja aleatória. São necessários mais estudos que reproduzam a mesma conclusão e outros que consigam explicar o mecanismo fisiológico que faz com que o paracetamol cause hiperatividade.

A ciência não desvendou complemente as causas por trás do transtorno de hiperatividade. É certo que há um forte componente genético. Pessoas que têm pais diagnosticados com o transtorno têm entre seis e oito vezes mais chances de ter TDAH. Fatores circunstanciais, como pré-maturidade, exposição pré-natal a cigarro, álcool e stress, também parecem aumentar o risco, mas não considerados causas comprovadas. Os autores do novo estudo dizem que o uso de paracetamol cairia nessa segunda classe de causas, as circunstanciais. Eles sugerem a hipótese de que o medicamento cruze a barreira da placenta, o órgão que envolve o bebê, e seja tóxico para as células do cérebro. Outra possibilidade é alterar hormônios da mãe que têm uma função importante no desenvolvimento do cérebro do bebê. "Estudos feitos em animais mostram que o paracetamol afeta hormônios maternos que têm uma função crucial no desenvolvimento do cérebro do feto", diz Olsen, da Universidade de Aarhus.

4) Se esse estudo não muda a conduta médica, para que ele serve?
Os cientistas têm certeza de que o paracetamol não causa malformações ou redução no crescimento do bebê. Agora, estão se debruçando sobre condições que podem aparecer anos depois. "Uma droga só é considerada segura para as condições para as quais ela já foi testada", diz Kate, da Universidade de Cardiff. "Quando aparecem novas evidências, é preciso reconsiderá-las." A evolução da ciência acontece assim: são anos e anos de estudos com resultados às vezes semelhantes, às vezes contraditórios, para construir um consenso. No caso do paracetamol, algumas pesquisas recentes e isolados mostram outras associações entre o uso do analgésico pela mãe durante a gravidez e problemas de neurodesenvolvimento em crianças. Numa revisão publicada no ano passado no “Journal of Reproductive Immunology”, os autores recomendam que “futuros estudos são necessários com urgência para reconsiderar a segurança e a dosagem do acetaminofeno durante a gravidez”.

5) Se há uma possibilidade de mudar o status de segurança do paracetamol, há motivo para pânico?
Não. Para provar que existe uma associação de causa e efeito para cada uma dessas condições (TDAH, problemas de neurodesenvolvimento), são necessários mais estudos. Por enquanto, não existem provas suficientes de que o paracetamol causa essas condições. Além disso, estudos como o da hiperatividade sugerem haver um risco e não a certeza de que tomar o remédio causará a condição. “Há fatores individuais, que variam de pessoa para pessoa, que podem interferir”, afirma o obstetra Cícero Mathias, chefe do departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André (SP). “A hiperatividade não é causada por um único fator."

6) Como devo agir se precisar usar o paracetamol durante a gravidez?
A recomendação dos médicos continua valendo. "O receituário dos obstetras é o mais conservador: quanto menos remédio tomar durante a gravidez, é melhor", diz Mathias, da Faculdade de Medicina do ABC. E, caso for necessário, o médico é a melhor pessoa para avaliar o status segurança dos medicamentos e pesar se o risco de tomar o remédio supera ou não os benefícios que ele pode trazer.

MARCELA BUSCATO*

Por saude-e-bem-estar