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UCRÂNIA

Há 80 dias, a Ucrânia, país do Leste Europeu e ex-integrante da União Soviética, iniciou uma espécie de viagem bem diferente da imaginada por Júlio Verne. Seus cerca de 45 milhões de habitantes transitam entre o passado de dominação e um futuro ainda incerto, com ponto de partida na Praça da Independência, em Kiev, capital do país.

Os atores internos dessa odisseia de revoltas, protestos, repressão, dependência econômica e manipulação são, de um lado, milhares de pessoas das mais diferentes concepções ideológicas e, do outro, um regime de governo desgastado e um tanto quanto exótico, denominado república semipresidencialista, ou um misto entre parlamentarismo e presidencialismo. Ambos os grupos rodeados por interesses econômicos de velhos conhecidos: a Rússia e a Europa.

No dia 21 de novembro do ano passado, um dia após a suspensão das negociações do país em torno de um acordo de livre comércio com a União Europeia, em favor de uma aproximação com o governo russo, vários protestos eclodiram, especialmente em Kiev.

Na cidade histórica não só para a Ucrânia, como para todos os povos eslavos, tinha início o chamado "EuroMaidan", algo que poderia ser traduzido do ucraniano como "Europraça".

O que começou sob relativo controle, explodiu nove dias depois a partir de uma violenta repressão policial. Protestos que reuniam poucos milhares de manifestantes começaram a reunir entre 50 e 800 mil pessoas (com apogeu no dia 1º de dezembro) insatisfeitas com a política econômica adotada pelo então primeiro-ministro Mykola Azarov e pelo ainda presidente Viktor Yanukovich e com o alinhamento à Moscou, do presidente russo Vladimir Putin. Atônito, o regime ucraniano ora cede às pressões populares, ora aperta o cerco.

Já a oposição cresce com novos e velhos personagens, com maior destaque para os líderes dos partidos Batkivschina, Arseni Yatsenyuk; Udar, Vitali Klitschko; e Svoboda, Oleg Tyagnibok. Os três estão na linha de frente das negociações com governo ucraniano e com a própria União Europeia.

Interrogações

Mas nem a renúncia de Azarov (e a entrada de Sehriy Arbuzov), em 27 de janeiro, nem a tentativa de se estabelecer leis antiprotestos (revogadas em 31 de janeiro), puseram fim à crise, acompanhada com preocupação pela comunidade internacional.

Entre outras perguntas que fazem os analistas globais está a seguinte: será uma "Primavera" ucraniana, inspirada em convulsões que atingiram Estados Unidos e Europa, no fim da década passada; o Oriente Médio, desde 2011; ou o Brasil, em meados do ano passado?

Outro questionamento que pode ser feito é: será o retorno de uma nova "Guerra Fria", dessa vez trazendo uma maior rivalidade entre Europa e Rússia e uma participação mais discreta do governo norte-americano?

Ou será esse é um processo inteiramente novo e de consequências imprevisíveis? Para tentar responder às perguntas, o Diário do Nordeste ouviu analistas para abordar a crise no país. As opiniões deles podem ser lidas nos textos seguintes.

Ideologias estão difusas no país

Embora o passado socialista e os acenos capitalistas permeiem toda a convulsão ucraniana, segundo os analistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, ainda é muito difícil enxergar um caráter de esquerda ou de direita para a crise, havendo num primeiro momento até mesmo uma sutil tendência ao centro.

Isso acontece, de acordo com o professor de Direito e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap-SP), Marcus Vinícius de Freitas, porque "a Ucrânia não tem, no presente momento, uma nova geração de líderes capazes para levar a efeito grandes mudanças domésticas. No entanto, o fato de a população favorecer à UE evidencia a busca por estabelecer mudanças profundas no país, particularmente dando maior segurança às regras do jogo. A próxima geração de líderes ucranianos tenderá a estar mais ao centro do espectro político num momento de transição".

Apesar disso, a difusão e a presença de grupos até antagônicos, mas agora unidos contra o governo Yanukovitch, indica um alto teor de imprevisibilidade no futuro de curto e médio prazo naquele país. Nesse sentido, o pesquisador Sued Lima ratifica que os protestos no país não são produzidos por um grupo homogêneo. "Os matizes ideológicos vão desde uma direita moderada, que inclui o líder Ivan Protsenko, a grupos nazistas. Quanto à posição da esquerda, faço referência ao recente manifesto do Partido Comunista da Ucrânia, que denuncia a tentativa de golpe", avaliou.

Já Freitas cita, por fim, o importante papel do exército na base de sustentação de Yanukovich. "Trata-se de um grupo organizado que possui poder para a repressão. Agora, como a Ucrânia, durante muito tempo, sofreu com a repressão, a resistência civil tenderá a aumentar, caso o militarismo se fortaleça".

Rússia ou UE? População se divide

Como primeiro aspecto a se observar, de acordo com o coordenador do Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade de Fortaleza (NEI-Unifor), Walber Muniz, vale lembrar que a Ucrânia como uma ex-república soviética tem uma importante minoria russa. As manifestações surgem, segundo ele, de uma série de exigências de grupos que preferem se desvincular desse passado ligado à Rússia.

Grupos, a propósito, que embora bastante diversificados, parecem seguir uma lógica geográfica. De acordo com o resultado das eleições de 2010, no leste, historicamente pró-Rússia concentraram-se a maior parte dos eleitores de Yanukovich, enquanto no oeste, pró-Europa, a oposição obteve mais votos. A divisão também tem muita relação com a composição étnica dessas macrorregiões, uma vez que grande parte dos cerca de 17% de ucranianos de origem russa vivem no leste. Outro problema é que, assim como acontece com quase todas as ex-repúblicas soviéticas e com algumas repúblicas que ainda lutam pela independência política da Rússia, há na Ucrânia uma dependência energética e de infraestrutura em relação ao maior país do planeta. "Os russos são muito mais rígidos com relação a essas questões que os Estados Unidos ou a Europa. Esses atores, no entanto, disputam um jogo de influência tendo em vista enfraquecer a Rússia", explicou o pesquisador.

A opinião é compartilhada pelo coronel-aviador da reserva Sued Lima, membro do Observatório das Nacionalidades da Universidade Federal do Ceará (UFC), "os atores de sempre rapidamente se fizeram presentes, reproduzindo o que ocorre na Síria: financiar a oposição, denunciar a suposta repressão e desestabilizar o país".

Diferente das "Primaveras"

As questões culturais e econômicas que culminaram com os protestos dos últimos dias, na visão de Muniz, no entanto, diferem bastante da onda de movimentos sociopolíticos que afetou de Wall Street aos fechados reinos árabes, passando pela Copa no Brasil. "São movimentos e protestos de natureza distinta. Um exemplo mais semelhante à questão ucraniana é a da Ossétia do Sul. Por lá passa toda a tubulação de gás que abastece a Rússia. E isso aumenta a tensão e a pressão do governo de Moscou. Os que se manifestam na Ucrânia também querem uma ruptura", avaliou o especialista.

Nova bipolaridade é improvável

Como pano de fundo das manifestações ucranianas e das disputas econômicas entre Rússia e União Europeia, a tensão entre dois velhos inimigos, que havia passado de uma "Guerra Fria" para uma espécie de "guerra zero absoluto", voltou a se aquecer nos últimos dez anos.

E no caso da crise que se desenrola em Kiev, as divergências entre as duas potências não são pequenas. De acordo com Sued Lima, "é evidente que a disputa de poder entre Rússia e Estados Unidos permanece, embora sem a conotação político-ideológica que a configurava no período de existência da União Soviética. Prevalecem interesses econômicos e comerciais e isso delineia os passos das duas maiores potências militares do planeta, que já definiram suas áreas de interesse geoestratégico e exercem toda a pressão possível para não perdê-las". Para o pesquisador, "esse aspecto leva a considerar bastante improvável que a Rússia aceite pacificamente o desligamento da Ucrânia do seu campo de influência, como os Estados Unidos não aceitariam que o México, por exemplo, se desgarrasse de sua influência. Para Moscou, a perda da Ucrânia equivale permitir que a OTAN se instale em suas fronteiras".

Mas apesar da tensão recente, a possibilidade de um acirramento da rivalidade EUA-Rússia, nos moldes do que houve entre 1945 e 1985, é descartada por Marcus Vinícius Freitas.

"Não haverá uma nova Guerra Fria porque a Rússia de 2014 é diferente daquela de 1945, seja por seu distanciamento ideológico daquela ocasião, seja pelo fato de que inexiste o potencial econômico para rivalizar os Estados Unidos, que, de fato, atualmente, se preocupam muito mais com a China", avaliou.

ADRIANO QUEIROZ 
Repórter