Mancini: "Spaletti, Capello e Mourinho são minhas principais referências como treinador"

Trabalhei com o Luxemburgo no ápice da carreira dele, na Seleção principal e na olímpica, e me espelho muito naquele período

Mancini, ex-jogador da Roma, Inter de Milão e Vila Nova — Foto: Reprodução

Em entrevista exclusiva, ex-jogador do Galo e da Roma fala sobre cursos da UEFA e retorno ao mercado como treinador

Com passagens de destaque pelo Atlético-MG, Inter de Milão e especialmente na Roma, onde é o segundo brasileiro que mais marcou gols no clube, Mancini se prepara para voltar a assumir um clube como treinador. A última passagem foi no Betim, onde assumiu a função de coordenador técnico durante os cinco meses do Módulo II do Campeonato Mineiro.

Aposentado desde 2016, o ex-jogador realizou todos os cursos necessários da UEFA na Itália, onde mantém dupla cidadania e construiu a maior parte de sua carreira como jogador. Nessa entrevista exclusiva ao ge, ele fala sobre a experiência, os trabalhos anteriores e dá sua opinião sobre a Copa do Mundo:

Você parou de jogar em 2016, no Vila Nova. Foram alguns anos parado até a primeira chance como técnico, no Foggia, em 2019. Como foi o processo de terminar a carreira de atleta e iniciar uma nova?

No final da minha carreira, não tinha vontade de continuar no futebol. Parei, tirei um tempo para a minha família, porque o atleta não tem tempo para cuidar dele, com viagens, jogos. Durante dois anos foquei na minha família. Mas os vinte anos no futebol pesam. Quis voltar e decidi voltar como treinador. Tomei a decisão de concentrar meus estudos na Itália, que foi o lugar onde passei grande parte da minha carreira e tem uma história de ter grandes treinadores, um grande conhecimento tático. O futebol espanhol é o futebol do toque, da posse. O futebol brasileiro é o futebol da magia, do drible. Mas o futebol italiano é bom para treinadores porque lá estão os melhores no entendimento do espaços do jogo.

Você termina sua resposta citando as diferentes escolas de futebol. Como enxerga a diferença entre esses países que citou?

Para mim, a principal diferença é na intensidade. O futebol europeu é mais intenso do que o futebol brasileiro. Intensidade não é só corrida ou velocidade. Você vê nos momentos de transição: os times europeus se comportam nesse momento de uma maneira muito mais coletiva que os times aqui. A resposta aos momentos do jogo é mais rápida. E por isso acho que, no mundo inteiro, falta também o toque individual. São times coletivamente tão fortes que muitas vezes falta um toque individual que pode decidir um jogo. Tenho a crença de que, como treinador, precisamos sempre aliar as duas coisas: o coletivo e o individual.

Muitos estudiosos e treinadores pensam que o futebol europeu conseguiu equilibrar esse peso individual quando adotou uma marcação mais setorizada, ou por vezes mista, que anula o peso individual e cria coberturas. Como você vê essa diferença dos tipos de marcação entre o futebol na Europa e na América Latina?

Eu concordo com você que hoje, o futebol não apenas europeu, mas no alto nível, adota estratégias mais por zona. Não existe um certo ou errado. A marcação individual é muito necessária. Como a velocidade do jogo é muito alta, no jogo rápido é preciso ter uma marcação individual quando não tem tempo de preencher o espaço. Mas é claro que o futebol num nível mundial adotou sistemas por zona porque o time consegue correr menos, fica mais próximo e consegue recuperar mais a bola também.

Muitos jogadores relatam que o conhecimento que eles tinham em campo é importante, mas não o suficiente para a carreira de treinador. Algo que gera curiosidade é o treino. Como você entendia uma sessão de treino como jogador e agora como treinador? O que mudou e o que você precisou estudar para conseguir aplicar um trabalho com um grupo de jogadores?

Rolou sim, claro. O jogador odeia treinamento tático. A gente chamava de "chático" (risos). Hoje vejo que esse tipo de treino me ajudou muito. O trabalho que mais gosto é o de onze contra zero, que muita gente chama de treino fantasma. É onde você entende a movimentação do time inteiro e consegue prever alguns movimentos e situações. Na Roma, o Luciano Spaletti dava esse treino de duas a três vezes por semana. Não era muito legal para o jogaor que quer ficar o tempo todo com a bola, mas ajudava todo mundo a se comportar como time. Ele parava, mostrava. Isso faz a diferença.

Você citou o Luciano Spaletti como um treinador de destaque. Hoje ele vem fazendo um trabalho de destaque no Napoli. Que outros treinadores você destaca como fundamentais durante sua passagem pelo futebol italiano?

Cito o Spaletti, o Capello e o Mourinho. São minhas principais referências como treinador. O Fabio Capello é um gestor nato, um exímio gestor de pessoas. Ele fazia os craques jogarem juntos em perfeita harmonia. O Mourinho é um grande comunicador. Ele trabalha seu psicológico, parece que entra dentro de você e desperta coisas que você não sabia que estavam lá. Já o Spaletti te ensina futebol. É um treinador que pega no seu braço durante os treinamentos, mostra o movimento, mostra onde está o espaço. Tem diferentes tipos de jogadores. Tem jogador que se você fala, ele entende. Mas tem jogador que você precisa mostrar, na prática, o que quer passar. Levo muito isso do Spaletti, dentro das minhas convições.

E aqui no Brasil, qual você cita como inspirações e referências para sua carreira de treinador?

Trabalhei com o Luxemburgo no ápice da carreira dele, na Seleção principal e na olímpica, e me espelho muito naquele período. É outro treinador que pegava, mostrava, entrava dentro do jogador.

Você começou sua carreira em times de médio e pequeno porte, como o Foggia, o Betim e o Vila Nova. É um caminho tido como o mais difícil, que é começar com elencos e contextos de menor estabilidade e maior risco, ir angariando resultados até chegar num time em condições de brigar por grandes conquistas. Como você vê seu papel como treinador nesses diferentes cenários?

É muito importante que o treinador entenda onde ele está. Não adianta querer jogar num 4-4-2 sem dois jogadores de área ou sem extremos que preencham o meio-campo. Entender o elenco que tem é entender também o lugar e o objetivo da direção. O Módulo 2 do Campeonato Mineiro, por exemplo, exige que os times sobrevivam antes de poderem propor o jogo ou apresentarem um futebol mais bonito. Tentei levar isso ao Betim e é algo que tento levar sempre na minha carreira.

Mancini treinou o Vila Nova na Série D do Campeonato Brasileiro em 2020 — Foto: Reprodução

Jorge Jesus, Abel Ferreira e tantos outros vieram aqui no Brasil e vem mostrando treinos e coisas diferentes do que outros treinadores. Sem entrar no mérito bom ou ruim, como você vê essa questão?

É sempre muito bom ter as portas abertas para treinadores de outro país. Acho bobagem isso do estrangeigo ser melhor ou pior, há espaço para todo mundo. Mas acontece, sim, do treinador estrangeiro muitas vezes ter uma aceitação e uma paciência maior por parte da torcida e da direção. O que penso é que o que vale é fazer um bom trabalho e ser competente, não depende de nacionalidade.

E como os treinadores brasileiros são vistos na Europa?

A questão da Licença UEFA pesa. Não adianta ser um bom treinador, é preciso ter todos os cursos da UEFA para poder treinador em todas as categorias da Europa. A CBF vem fazendo um trabalho interessante, mas ainda há muita defasagem. Não é pra amanhã, vai levar tempo para o treinador brasileiro conseguir se equiparar nesse quesito, por uma questão de formação.

Muitos treinadores começam a carreira com conteúdo, com chances, e no fim, acabam não faendo trabalhos em grandes clubes, ou com títulos, pela falta de resultados a curto prazo. Como você entende essa questão? Acha que é importante se adaptar ao cenário?

O cenário ideal para qualquer treinador é o de médio a longo prazo. O que acontece é que nós, treinadores, somos empregados como qualquer um. Se aparece uma oportunidade de curto prazo, é um trabalho que vai exigir adaptação. Muitos treinadores entendem que salvar um time do rebaixamento é uma oportunidade de mostrar qualidade. Outros entendem que é algo que vai queimar o filme. Depende muito do momento na carreira e como treinador.

Agora falando de Copa do Mundo. Quais seleções você entende que são as favoritas para o Mundial? E como você enxerga o trabalho do Tite no Brasil?

Vejo a França, Alemanha e a Bélgica como favoritas. Apesar da Bélgica não ter tanta tradição, tem grandes jogadores e ainda mais experientes que o último ciclo. O Brasil tem uma equipe muito jovem, mas é uma geração de muito talento, com jogadores no mais alto nível como Antony, Raphinha, Vini e Richarlison e um grande talento, que é o Neymar. Esses novos valores vão ajudar a dividir responsabilidades com o Neymar, que precisava dessa distribuição de protagonismo, até para ele conseguir jogar melhor e decidir mais. Acredito muito no Brasil, na grande campanha das Eliminatórias. Vai ser uma Copa difícil.

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