De Ariadna a Linn, avanços e desafios para os direitos e a saúde das pessoas trans no Brasil após 11 anos

Entre 2011 e 2022, foram onze anos em muita coisa mudou na vida das pessoas trans.

Linn da Quebrada e Ariadna (Foto: Reprodução/Instagram)

Nos onze anos entre a presença de duas participantes trans no BBB foram reconhecidos direitos dessa população e necessidade de combater transfobia, mas entraves seguem, assim como a discriminação e a violência

Em 11 de janeiro de 2011, Ariadna Thalía da Silva Arantes entrava na casa do "Big Brother Brasil 11" como a primeira pessoa transgênero a participar do maior reality show de confinamento do país.

A cabelereira optou por não contar aos demais participantes que não se identificava com o gênero atribuído ao nascer, fato que foi interpretado como uma das causas para ela ter sido eliminada na primeira semana do programa.

Onze anos depois, o reality show conta com a participação de Lina Pereira, a Linn da Quebrada, atriz e cantora que foi convidada a entrar no BBB 22 como parte do "Camarote", o grupo de participantes previamente conhecidos do público. Portanto, se apresentando como travesti desde o primeiro minuto no confinamento.

Entre 2011 e 2022, foram onze anos em muita coisa mudou na vida das pessoas trans. Várias delas para melhor, com o reconhecimento de diversos direitos essenciais na vida dessa população, como o uso do nome social, a retificação de documentos e o acesso a procedimentos médicos.

No entanto, a violência persiste e, mais, aumentou. O número de mortes de pessoas trans por ano, registrado anualmente nos balanços da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), subiu no período. Em 2011, foram registradas 100 mortes de pessoas vítimas da transfobia em um ano, número que subiu para 140 no levantamento mais recente, datado de 2021.

As pessoas trans foram beneficiadas principalmente por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que entendeu que os princípios da Constituição que tratam do direito à dignidade, à saúde e à liberdade, entre outros, justificavam a adoção de medidas protetivas, incluindo a permissão expressa para o uso do nome social e a criminalização da transfobia.

Por outro lado, o Brasil segue estando na lista dos países com mais registros de portes de pessoas trans em razão da transfobia. As 140 mortes em um ano citadas acima são consideradas subnotificadas por especialistas -- e a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos, menos da metade dos 76 anos da população geral.

Os números são reflexos do fato de que a transfobia, a discriminação consistente e institucionalizada contra pessoas trans, ainda é persistente no Brasil. No Dia da Visibilidade Trans, celebrado no Brasil neste sábado, dia 29 de janeiro, o objetivo é jogar luz sobre esse cenário e os entraves que ainda existem à plena cidadania da letra T da sigla LGBTQIA+.

A GQ Brasil lista abaixo marcos para os direitos das pessoas trans no Brasil em onze anos e os entraves que ainda existem para que sejam plenamente respeitados.

Nome e gênero retificados em documentos

No dia 1º de março de 2018, o STF reconheceu o direito das pessoas trans de terem seu nome e gênero retificados em sua documentação, de forma a refletir a sua identidade de gênero. 

Até então, isso era possível apenas com uma ação judicial. Frequentemente, juízes exigiam cirurgias de transgenitalização para permitir a mudança. Ou mesmo relatos e depoimentos de pessoas próximas que confirmassem.

Uma mulher transgênero do Rio Grande do Sul questionou uma decisão do tribunal local que exigiu que ela passasse por uma cirurgia de afirmação de gênero para autorizar a mudança, o que ela não desejava.

"Identidade de gênero não se prova", afirmou, então, o ministro Luís Roberto Barroso. Com a decisão do STF, colocada em prática alguns meses depois pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), passou a ser possível iniciar a retificação direto em cartório.

Criminalização da transfobia

Em 13 de junho de 2019, o STF reconheceu que a homofobia e a transfobia são agresssões sistemáticas contra a população LGBTQIA+ a partir de manifestações de ódio e discriminação contra grupo socialmente vulnerável.

Diante dessa concepção, manifestações homofóbicas e transfóbicas passaram a poder ser enquadradas dentro do crime de racismo, criado originalmente para punir as discriminações contra pretos, pardos e indígenas.

Os ministros da Suprema Corte entenderam que a Constituição brasileira já estabelecia os princípios para a punição adicional de crimes de ódio, mas que o Congresso Nacional foi omisso ao não aprovar uma tipificação para que esse delito pudesse ser punido devidamente. 

Assim, competia ao STF, na omissão dos deputados e senadores, estabelecerem o paralelo adequado para que juízes de todo o Brasil pudessem adotar em suas decisões. A ação pedindo esse reconhecimento foi movida pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e pelo partido político Cidadania.

Atendimento adequado no SUS

Em 28 de junho de 2021, o ministro Gilmar Mendes, do STF, mandou o Ministério da Saúde alterar a plataforma do Sistema Único de Saúde (SUS) para corrigir uma defasagem no atendimento da saúde pública às pessoas trans.

O sistema do SUS limitava o agendamento de exames e consultas relacionadas com a biologia sexual às pessoas cisgêneras. Por exemplo, uma consulta com um ginecologista poderia ser agendada apenas pelas mulheres cis -- e não pelos homens trans, que também possuem a anatomia atendida pela especialidade médica.

No último ano, durante as campanhas Outubro Rosa e Novembro Azul, de conscientização para a prevenção do câncer de mama e do câncer de próstata, a GQ Brasil publicou reportagens que falam sobre a importância dos homens e das mulheres trans acompanharem de acordo com os critérios médicos e prevenirem o surgimento das doenças.

Para além da conscientização, a decisão do ministro do STF, que atendeu a uma ação apresentada pelo partido político PT, age em uma outra seara importante, a de que essas pessoas travestis e transgêneras tenham acesso aos médicos das especialidades necessárias, mesmo que ainda diante das dificuldades de escassez de recursos do SUS.

Homens trans inseridos, mas processo ainda é demorado

O processo transexualizador, como é tecnicamente chamado pelo Ministério da Saúde, foi instituído no SUS em 2008.

No entanto, só a partir de novembro de 2013 uma portaria instituída pela então administração federal passou a considerar também os homens trans e as travestis.

O atendimento no sistema público inclui a triagem ambulatorial e os atendimentos especializados, incluída a hormonização e os cuidados com a saúde mental.

Na teoria, a prática é outra, no entanto, com as pessoas trans enfrentando longos prazos para a realização de procedimentos, uma situação que foi agravada pela pandemia da Covid-19.

Em razão da crise provocada pela doença do novo coronavírus, governos estaduais e municipais suspenderam a realização de cirurgias eletivas, consideradas não emergenciais. Neste processo se incluem as cirurgias que integram o processo transsexualizador, como mastectomias e procedimentos de afirmação de gênero.

Levantamento da Defensoria Pública de São Paulo, do início de 2021, dá conta um prazo assustador, de 18 anos, para que uma pessoa espere pela realização de uma cirurgia transsexualizadora de forma gratuita pelo SUS.

https://gq.globo.com/Dialogos/Diversidade/noticia/2022/01/de-ariadna-linn-avancos-e-desafios-para-os-direitos-e-saude-das-pessoas-trans-no-brasil-apos-11-anos.html