Falta tudo, inclusive remédios que podem salvar vidas. E, às vezes, falta até o próprio hospital dentro da universidade. Alunos de medicina em todo o Brasil enfrentam dificuldades para aprender.
O Fantástico mostra o estado precário dos hospitais universitários públicos, onde falta tudo, inclusive remédios que podem salvar vidas. E, às vezes, falta até o próprio hospital dentro da universidade. Você vai descobrir as dificuldades enfrentadas pelos os alunos de medicina em todo o Brasil na reportagem especial de Edson Ferraz, Nélio Brandão e Francisco Regueira.
“É goteira para tudo quanto é lado, é infiltração, a parede é toda amarela”, reclama a estudante de medicina Maria Eduarda Bellotii.
“Nós começamos o estudo de anatomia cardíaca , nós não tínhamos onde estudar. A gente viu que a alternativa seria o uso de corações de porcos”, relata a estudante Ana Clara de Oliveira.
“Eu vi que a estrutura da universidade não era suficiente para formar um bom médico”, diz o estudante Felipe Melo.
As queixas são de estudantes de medicina de universidades estaduais e federais. Os futuros doutores deveriam aprender a profissão em hospitais universitários bem instalados, bem equipados e com todo o material necessário para uma boa formação profissional. Mas a realidade é outra.
“A gente tem que correr muito atrás e porque muita coisa deixa a desejar”, afirma o estudante Willian Duabli.
No hospital da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, a equipe de reportagem do Fantástico flagrou pacientes no corredor e muitas macas no chão. Na parede, o aviso do perigo: risco grande de infecção hospitalar. O chão é altamente contaminado. Mesmo assim, pacientes com doenças infecto-contagiosas ficam internados no corredor.
Repórter: A senhora é parente dele?
Mulher: Sou.
Repórter: Pneumonia?
Mulher: Pneumonia.
Repórter: Por isso que está de máscara?
Mulher: Não, é que eu estou gripada.
O diretor José Carlos Dorsa diz que os hospitais da rede pública não conseguem atender a população. “Esses pacientes do corredor dos hospitais universitários são uma sobrecarga a esses hospitais que não deveria existir, porque isso dificulta a qualidade e dificulta o ensino”, afirma ele.
O hospital da Universidade Federal de Rondônia é um prédio vazio que começou a ser construído 12 anos atrás. Era um empreendimento privado, mas acabou doado à universidade há três anos.
A universidade e o Ministério da Educação avaliam se um dia esse prédio abandonado pode abrigar um hospital. Ou se outro terá que ser construído.
Enquanto isso, os alunos de medicina têm aulas práticas em hospitais da rede pública. “Infelizmente não oferecem nem condições de atender à população, quanto mais o ensino de um acadêmico de medicina da Universidade Federal de Rondônia”, destaca o estudante de medicina João Fernandes.
“Isso acarreta prejuízos no processo de formação profissional desses estudantes”, alerta Ana Escobar, chefe do Departamento de Medicina da universidade.
O hospital da Universidade Federal do Piauí levou 23 anos para ficar pronto. Tem enfermaria e centro cirúrgico montados. Mas ainda não funciona.
A equipe do Fantástico entrou em um dos hospitais da rede pública do Piauí que são usados pelos estudantes, que acabam fazendo o trabalho de médicos já formados.
“Aconteceu já comigo de eu chegar lá, ver uma paciente em estado grave, tentar levar o médico até o paciente, o médico estar muito ocupado, olhar para mim e dizer: ‘Felipe, você sabe conduzir esse paciente?’. O que é uma coisa inadmissível, uma coisa inaceitável”, alerta o estudante de medicina Felipe Melo.
Há quase um ano a Universidade Estadual de Pernambuco inaugurou o campus da cidade de Garanhuns. O quadro de professores ainda não está completo. E falta também um hospital, como conta o estudante Everton Farias, que saiu do interior de Minas para aprender medicina no local: “Nesse terreno deveria funcionar o prédio de saúde, onde haveria todos os laboratórios equipados para o curso médico. O problema primordial é a parte de prática”, afirma.
Em uma das mais importantes universidades do país, a Federal do Rio de Janeiro, a história se repete. O hospital universitário federal abriga um dos melhores grupos de professores de medicina do país. A residência médica é uma das dez mais disputadas do Brasil. Apesar da excelência em ensino, a situação também é precária.
Esta semana, o "Profissão Repórter" mostrou vídeos feitos por alunos revelando o abandono do hospital. Na sexta-feira passada (29), o Fantástico entrou lá. De cara, enfermeiras disseram que faltam remédios: “A gente pede para o paciente comprar, infelizmente. ‘Se você não comprar, vai morrer’”, alertam.
Um paciente que sofreu enfarte diz que ainda não recebeu o tratamento adequado: “O doutor chegava para gente e dizia: ‘ó, a máquina está quebrada, a máquina não está isso, a máquina não está aquilo’. Já há um mês e pouco”, diz.
Isso acontece também no hospital da Universidade Federal do Pará. Um aparelho para exames importantes está quebrado e sem previsão de conserto.
Repórter: Esse equipamento é de quê?
Atendente: Tomografia.
Repórter: E a previsão?
Atendente: Não tem previsão, não.
Já em Campo Grande, uma incubadora permanece encaixotada no corredor. De volta ao Rio, a estudante de medicina da UFRJ mostra vídeos do hospital universitário. “Dia 17 de junho de 2012, e eu estou aqui no nono andar. Alas C e D. Tudo abandonado”.
“Tem paciente de cadeira de rodas que não tem condição de subir se não for de elevador, e NÃO tem nenhum funcionando. Só tem rampa do primeiro para o segundo. Do térreo para o primeiro não tem rampa, não tem como subir”, mostra uma atendente.
“Os banheiros do hospital, quando têm papel e quando têm sabonete é luxo, a gente fica feliz. O normal é não ter nada”, afirma a Maria Eduarda Bellotii.
“Banho quente aqui é de caneco”, avisa um atendente.
“Vão 15 alunos ao mesmo tempo examinar o paciente, ele se cansa, ele fica cansado, e por aí vai”, diz Maria Eduarda.
No resto do país, essa proporção não muda muito. “O paciente já passou por dez alunos e vai repetir novamente o mesmo processo, que vai, por exemplo, apalpar o abdômen dele, que está extremamente dolorido, e mesmo assim você vai lá e tem que apalpar e você fica na dúvida: ou você aprende, ou você maltrata o paciente?”, alerta o estudante Ary Oliveira Lima.
“Nós temos uma norma que estabelece que, para cada aluno, é preciso ter cinco leitos disponíveis. E na verdade, pelas estimativas que a gente tem, nós temos cinco alunos para cada leito”.
É tanto abandono que parece que o Brasil não tem hospitais universitários de qualidade. Mas tem, sim. E pelo menos um deles é centro de referência em pesquisas de ponta.
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tem dezenas de laboratórios funcionando um do lado do outro. Lá, pesquisadores investigam doenças genéticas raras e também distúrbios mais simples como a insônia.
Um dos mais avançados equipamentos para o tratamento do câncer do país permite combater com precisão as células de um tumor, reduzindo os efeitos colaterais para o paciente, um procedimento que o SUS não paga e que, no local, é oferecido de graça para a população.
“O hospital é claramente montado para atender às nossas necessidades”, afirma o estudante Fabrício Mattei.
Até os prontuários são eletrônicos. Nos terminais pelos corredores, médicos e enfermeiras podem acessar dos sinais vitais à prescrição de medicamentos.
“Nós temos os laboratórios também online, as salas de aula estão bem preparadas para isso, temos multimídia”, destaca Sérgio Pinto Ribeiro, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS.
O hospital paga salários e bolsas de estudo com recursos do Ministério da Educação. O dinheiro do SUS vai todo para o atendimento. Os outros hospitais universitários não funcionam assim. A instituição gaúcha ainda tem convênios privados, projetos e parcerias que garantem R$ 60 milhões, dinheiro que ajuda a área de pesquisa.
Mesmo assim, existem problemas: macas pelos corredores, pacientes em cadeiras em uma emergência superlotada.
“O espaço não é o melhor, mas as condições de atendimento são as melhores que nós podemos oferecer”, garante Maria Henriqueta Cruzi, professora da Escola de Enfermagem da UFRGS.
Hoje no Brasil, o investimento público em saúde equivale a 3,77% do PIB, a soma de tudo o que é produzido no país.
Segundo a especialista Juliana Fiuza Cislaghi, é preciso investir quase o dobro disso, o equivalente a 6% do PIB. “A gente precisaria de mais R$ 83 bilhões para alcançar esse percentual de 6% do PIB público, que seria o mínimo que é aplicado em países que têm sistemas de saúde parecidos com o nosso, sistemas universais e públicos”, afirma.
Os 46 hospitais universitários federais receberam nos últimos três anos quase R$ 900 milhões. E esta semana, o Governo Federal anunciou um investimento de R$ 994 milhões até 2014 no setor de saúde como um todo.
Segundo o governo, a gestão dos hospitais universitários está mudando, graças a uma empresa criada para modernizar o sistema. “A meta da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares é que todos os hospitais do sistema funcionem como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Nós estamos em um processo de recuperação de todos os outros. A Universidade Federal do Piauí foi a primeira a fazer a adesão à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Tanto assim que nós já estamos trabalhando com a equipe desse hospital, de maneira que nós possamos inaugurá-lo no segundo semestre deste ano”, garante José Ruben Rebelatto, presidente da empresa.
Em nota, a Universidade Federal do Rio de Janeiro afirma que o prédio do hospital foi construído há mais de 50 anos. E que desde janeiro passa por obras em quase todos os andares. A nota diz ainda que em cinco anos um novo prédio será construído.
Também em nota, a Secretaria de Saúde de Rondônia afirma que a abertura de mil vagas deverá desafogar os hospitais hoje usados pelos estudantes da universidade federal. A nota diz também que a construção de um hospital universitário vai diminuir a demanda na rede pública do estado.
O diretor do hospital de Campo Grande diz que a instituição está sendo recuperada: “O hospital ficou parado há mais de 20 anos, descendo a rampa, sucateado, com falta de pessoal. Nos últimos três anos nós, já reformamos mais de 30% do hospital”.
Em Belém, a direção do hospital nega que o tomógrafo mostrado pelo Fantástico esteja quebrado. A nota afirma que a instituição está passando por reforma geral e que novos equipamentos foram adquiridos, inclusive um tomógrafo.
Na Universidade de Garanhuns, o diretor Pedro Falcão afirma que nenhum hospital será construído. “Nós não teremos aqui um hospital da universidade. Nós vamos usar como campo de estágios para os estudantes a rede pública de saúde”.
Segundo ele, o terreno mostrado nesta reportagem ganhará um prédio para laboratórios de medicina, psicologia e enfermagem.
Para Felipe Melo aluno da Federal do Piauí, estudar e praticar em um hospital universitário, um HU, é um sonho que não se realizou, mas ele não desiste: “Eu estou me formando agora, nunca estudei no HU e agora eu estou mudando meu sonho. Meu sonho é de um dia trabalhar no HU”, diz.