Operação - DECON - Delegacia Especial de Crimes Contra o Consumidor - Laboratório PCS Saleme — Foto: Rafael Campos
Por Rafael Soares - — Rio de Janeiro - 15/10/2024
Quase metade dos pagamentos feitos pelo Governo do Rio ao laboratório PCS Lab Saleme, investigado por erros em exames de HIV, decorreu de contratações feitas sem licitação. Desde 2022, a empresa recebeu R$ 21,2 milhões dos cofres do estado. Desse total, R$ 3,7 milhões (ou 17%) foram pagos por meio de termos de ajuste de contas (TACs) — ou seja, os pagamentos eram feitos após a execução do serviço, mediante apresentação de nota fiscal, sem que a empresa sequer tivesse contrato com o governo. Já outros R$ 6,2 milhões foram recebidos em contratos considerados "emergenciais", fechados em processos com dispensa de licitação.
Os primeiros pagamentos feitos pelo governo à empresa remontam ao final de 2022. Na ocasião, a gestão de várias Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) passou de Organizações Sociais (OS) para a Fundação Saúde, órgão vinculado à Secretaria estadual de Saúde, num processo iniciado em 2020. Sob a justificativa de que o serviço de exames clínicos nas unidades precisava continuar sendo prestado mesmo sem um contrato em vigor, o governo optou por realizar pagamentos ao laboratório por meio de TACs. Os serviços começaram a ser prestados em agosto de 2022 e, só naquele ano, mais de R$ 1 milhão foi pago pela empresa dessa maneira. Os serviços começaram a ser prestados em agosto.
Só em fevereiro de 2023, o PCS Lab Saleme passou a ter um vínculo formal com o governo para atender as UPAs. No entanto, a contratação da empresa não foi realizada a partir de uma concorrência pública: o contrato, para realizar exames em quatro UPAs na Zona Oeste do Rio no valor de R$ 2,1 milhões, foi assinado com dispensa de licitação pela Fundação Saúde.
Na época, o secretário de Saúde era Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, o Doutor Luizinho (Progressistas), que é parente dos sócios do laboratório. Um deles, Walter Vieira, preso nesta segunda-feira, é casado com sua tia. Já o outro sócio, Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, que assina os contratos da empresa com o governo, é filho de Walter.
o que você precisa saber
Transplantes de órgãos com HIV:
• Seis pessoas testaram positivo para HIV após receberem órgãos transplantados no Estado do Rio. O laboratório PCS Lab Saleme (que fica em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense) era o responsável pelos exames dos doadores e apresentou resultado negativo para HIV de dois doadores, mas eles eram soropositivo. Entre os transplantes feitos estão os de rins, fígado, coração e córnea.
• A investigação da Secretaria estadual de Saúde do Rio sobre o caso começou em se-tembro desse ano e culminou com a interdição do laboratório. A secretaria infor-mou que desde então tomou uma série de medidas, como suspensão dos contratos e a abertura de uma sindicância interna para identificar e punir os responsáveis.
• Mais de 10 unidades de saúde eram atendidas pelo laboratório investigado.
• Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, sócio-diretor do laboratório PCS Lab Saleme, já trabalhou na Secretaria estadual de Saúde do Rio através da Fundação Saúde, entre 2021 e 2022. Ele é primo do deputado federal e ex-secretário de Saúde do Rio Doutor Luizinho (Progressistas), que ocupava o cargo durante o processo licitatório que culmi-nou na contratação do laboratório.
• As investigações indicam que os laudos foram falsificados por um grupo criminoso e usados pelas equipes médicas, induzindo-as ao erro. Isso levou os pacientes a serem contaminados.
• Um dos pacientes infectados morreu — as causas do óbito ainda estão sendo apuradas.
• O laboratório PCS Lab Saleme assinou três contratos com o Governo do Rio que, soma-dos, chegam a R$ 17,5 milhões. Dois deles foram realizados de forma emergencial, com dispensa de licitação.
• Segundo levantamento na Transparência do Estado, até outubro deste ano, o laboratório teve empenhos autorizados pelo governo no valor de R$ 21,58 milhões. A capacidade técnica para produzir exames foi questionada por uma concorrente durante o processo de licitação.
• "Não fiz nada para adquirir isso. O erro foi de pessoas irresponsáveis", relatou uma das pessoas infectadas por HIV após receber um rim de um doador soropositivo.
• A Polícia Civil realiza a operação Verum e cumpre quatro mandados de prisão e 11 de busca e apreensão em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e na capital. Foram presos Walter Vieira, apontado como sócio do laboratório; e Ivanildo Fernandes dos Santos que, segundo as investigações, é um dos responsáveis técnicos pelos laudos emitidos.
• A assinatura de Jacqueline Iris Bacellar de Assis aparece em um dos laudos que ates-taram que os doadores de órgãos não tinham HIV. Ela reconheceu que as rubricas nos documentos são suas, mas negou qualquer envolvimento no caso e disse que sequer é biomédica. Ela está entre os alvos de mandado de prisão na operação.
• Os envolvidos são investigados por crime contra as relações de consumo (art. 7º, inciso VII da Lei 8.137/90), associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária, entre outros.
• Ao definir o caso como um "acontecimento sem precedentes na história do transplante brasileiro", o ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e especialista em transplante de fígado, Ben-Hur Ferraz Neto, afirmou que as doações são feitas com "segurança hoje em todo o sistema" e que quem está à espera de um ór-gão pode ficar tranquilo.
• Neto falou sobre o protocolo de testagem, definido como "muito rigoroso", após a constatação do óbito, com testes sorológicos de diversas doenças.
Doutor Luizinho permaneceu na secretaria de janeiro a setembro de 2023 e, ao deixar o cargo, indicou sua sucessora, Cláudia Mello, e seguiu tendo influência na pasta. Sua irmã, a dentista Débora Lúcia Teixeira Medina de Figueiredo, ocupa até hoje um cargo de direção na Fundação Saúde.
Em outubro, o PCS Lab Saleme fechou um novo contrato com a pasta, novamente com dispensa de licitação. Por R$ 3,8 milhões, a empresa passou a ser responsável pelos exames clínicos do Hospital estadual Ricardo Cruz, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense — reduto político de Dou-tor Luizinho e mesma cidade onde fica a sede da empresa. Novamente, a justificativa para o pro-cedimento emergencial foi o "risco a saúde e a segurança da coletividade" que a interrupção da prestação de serviço acarretaria, já que o hospital também havia sido incorporado à Fundação Saúde no mesmo mês. O processo de contratação da empresa começou ainda na gestão de Luizi-nho.
Somente em dezembro de 2023, mais de um ano depois de começar a receber pagamentos do governo, o PCS Lab Saleme foi contratado a partir de um processo licitatório. Na ocasião, o laboratório apresentou a melhor proposta para prestar o serviço de realização de exames clínicos em 11 unidades de saúde do estado. Esse contrato, que engloba o HemoRio e a Central de Transplan-tes, foi o que culminou na realização dos exames que não detectaram HIV nos órgãos transplan-tados.
Inicialmente, o contrato tinha o valor de R$ 9.801.008,74, mas teve o total aumentado, em março deste ano, em R$ 1.679.459,04. Isso para incluir o atendimento a mais duas unidades, os postos de atendimento médico (PAM) de Cavalcanti e de Coelho Neto, ambos na Zona Norte da capital. Ao todo, os três contratos do PCS Lab Saleme com a Fundação Saúde preveem a prestação do serviço num total de 18 unidades, entre hospitais, PAMs, institutos e centros especializados.
Durante o último processo de licitação, no entanto, o PCS Lab Saleme teve sua capacidade técnica para produzir exames questionada. Segundo o recurso interposto por uma concorrente, o laboratório não conseguiu comprovar que tinha experiência prévia para executar metade dos exames previstos por contrato. O documento que faz parte do processo de concorrência aponta que o PCS Lab Saleme só conseguiu comprovar a execução de 581 mil exames por ano — e o edital previa pelo menos 628 mil.
O laboratório alegou, em ofício que também faz parte da licitação, que "realiza o objeto do certa-me há mais de dez anos, já tendo realizado, só em favor da Secretaria municipal de Nova Iguaçu, mais de 2 milhões de exames clínicos e anatomia patológica". O laboratório tem contratos com a Prefeitura de Nova Iguaçu desde 2016. A Fundação Saúde entendeu que "a empresa vencedora atendeu as exigências do edital" e homologou o resultado.
Laços familiares
Matheus Vieira, um dos sócios do PCS Lab Saleme, também é sócio de outra empresa do ramo da saúde, a Quântica Serviços de Radiologia. A firma foi contratada por mais de R$ 8 milhões pela OS Instituto de Psicologia Clínica Educacional e Profissional (IPCEP), que administrava o Hospital estadual Getúlio Vargas e a UPA da Penha, ambos na Zona Norte do Rio, para realizar serviços de exames de raio-X, tomografia computadorizada e ultrassonografia nas duas unidades. Segundo o RJTV, da TV Globo, quem assina o contrato, representando a OS, é Daniel Cardoso de Sá, genro do ex-presidente da Câmara Federal Eduardo Cunha.
Sá, que é casado com a deputada federal Dani Cunha (União Brasil), deixou a OS em julho passado. o IPCEP já recebeu quase meio bilhão de reais dos cofres do estado.
https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/10/15/laboratorio-investigado-por-erros-em-testes-de-hiv-recebeu-quase-r-10-milhoes-do-governo-do-rio-em-procedimentos-sem-licitacao.ghtml