Causada por uma alteração cromossômica, a síndrome de Prader-Willi gera apetite em excesso e comprometimento cognitivo. Veja relatos de duas mães de crianças com essa condição
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Vanessa Centamori
Síndrome de Prader-Willi afeta um em cada 15 mil nascimentos e tem como principal sintoma o apetite excessivo. Saiba mais sobrea a condição — Foto: Patrick Fore/Unsplash
A pequena Valentina, de 10 anos, nasceu com a síndrome de Prader-Willi, condição genética rara que altera o cromossomo 15 e gera fome praticamente 24 horas por dia. É comum que a menina levante às 5 h da manhã para pedir comida. “Isso atrapalha a estrutura da família de sono e descanso, porque ela acorda com muita ansiedade para o café da manhã”, conta a mãe solo da garota, a editora de livros Liane Motta, à GALILEU. “Depois, ela volta a dormir e acorda novamente umas 6h ou 6h30 em busca do novo café da manhã”.
Motta é presidente da Associação Brasileira da Síndrome de Prader-Willi, organização sem fins lucrativos que defende os diretos das pessoas com a condição, que afeta um em cada 15 mil nascimentos. Entre os principais sintomas estão a hiperfagia (apetite elevado), hipotonia (fraqueza muscular) e comprometimento cognitivo.
Mas a principal preocupação médica é a obesidade mórbida: a americana Angel, de 11 anos, que vive em Atlanta, na Geórgia (EUA), chegou a pesar cerca de 125 kg por conta da síndrome, segundo divulgou o site britânico Daily Mail no ano passado. Outro caso chocante é de um menino de 17 anos com Prader-Willi que, de acordo com o The New York Times, morreu na véspera de Natal de 2015, depois que seu estômago se rompeu por comer demais na festa da família.
Por conta dos cuidados da mãe e de médicos, Valentina ainda não teve complicações tão graves. “Na literatura, a gente vê que as crianças [com Prader-Willi] têm uma compulsão alimentar, uma fome voraz. Mas ela [Valentina] não rouba alimentos, a gente faz um controle calórico, não dá açúcar. Ela não tem acesso a refrigerante, a sobremesa é só uma vez ou outra”, conta Motta.
Liane Motta com a filha, Valentina, de 10 anos — Foto: Arquivo Pessoal
Patrícia Salvatori e Larissa no Natal de 2021 — Foto: Arquivo Pessoal
Larissa ao lado da mãe na maternidade — Foto: Arquivo Pessoal
Mãe e filha em 2023 — Foto: Arquivo Pessoal
A importância do controle alimentar
As crianças com Prader-Willi precisam de uma dieta diferenciada, "baixa em carboidratos e sem açúcar, porque o sabor doce aumenta a hiperfagia nessas crianças", segundo explicou a especialista na síndrome, Carolina Passone, durante palestra no Congresso Internacional sobre Obesidade (ICO), que aconteceu entre 26 e 29 de junho em São Paulo.
Por esta razão, Larissa, de 19 anos, que sofre da condição, não comia açúcar até chegar na adolescência. "Quando íamos para uma festa que tem oferta de comida, ou uma festa de família, aquilo era um problema, porque ela queria comer, comer e comer", diz à GALILEU a mãe da garota, a consultora de diversidade e pesquisadora Patrícia Salvatori.
"Já tive situações em que deixei de ir a lugares, [devido à condição de Larissa]. Mas foram casos pontuais, porque eu sabia que era um ambiente que ela ia sofrer muito", relata a mãe.
Preocupada, Patrícia fez combinados para cuidar da alimentação da filha. "Se o aniversário era no almoço, à noite a gente tomava uma sopinha de legumes", exemplifica. "Eu tentava fazer esses equilíbrios, para ela também não deixar de viver, porque senão ela se tornaria uma pessoa isolada", observa.
A mãe de Valentina também negocia com a filha. "Ela [Valentina] questiona muito na escolinha porque outras crianças podem comer e ela não, então eu tenho que sempre inventar alguma resposta", afirma Liane. "Ela já chorou por comida quando era mais nova. Isso era muito doído para mim porque a alimentação é algo muito importante para a sobrevivência de qualquer ser humano. Você negar comida para um filho é muito doloroso. Mas, hoje em dia, a gente negocia muito, conversa muito'".
Bebês “molinhos”
Logo na gravidez, Liane sentiu que algo estava errado: sua filha quase não se mexia na barriga. "O bebê [com Prader-Willi] já tem uma hipotonia [fraqueza muscular] na própria gestação, uma hipotonia intrauterina", relata. "Então, não [se] mexe muito. No meu caso, eu tive excesso de líquido amniótico, que também é sintoma da síndrome".
Conforme explica à GALILEU a endocrinologista pediátrica Ruth Rocha Franco, as crianças com essa condição costumam nascer sentadas, pois têm dificuldade de fazer rotação no útero.
“São bebês que não choram muito, são muito fraquinhos para sugar [leite], quase não se me-xem, acabam ficando no hospital porque não conseguem mamar, não acordam”, detalha a médi-ca, que atua nos Ambulatórios de Cirurgia Bariátrica, obesidade infantil e Prader-Willi do Instituto da Criança e do Adolescente (ICr-HCFMUSP).
Logo na primeira noite de vida, Larissa teve que ficar internada na UTI neonatal. “Era tão hipotônica que ela não mamava no peito, só dormia, e quando tentaram dar [leite] de colherzinha, ou de mamadeira, lá na maternidade, ela engasgou”, relata Patrícia Salvatori.
Após ficar internada por 21 dias, a menina passou por um tratamento com fonoaudiólogo para melhorar a amamentação e começou fisioterapia ao completar um mês. Como o exame para o diagnóstico ainda não estava disponível no Brasil, uma amostra de sangue sua foi enviada para os Estados Unidos, confirmando a síndrome de Prader-Willi.
Atualmente, porém, o teste para a síndrome pode ser feito de graça após o nascimento no Laboratório de Alta Complexidade do Instituto Fernandes Figueira no Rio de Janeiro (Laciff/IFF/Fiocruz). É possível também identificar a condição já no pré-natal com um exame chamado NIPT NACE 24 Ampliado.
Segundo Ruth Rocha, até os dois anos de idade, as crianças com a síndrome têm dificuldade de ganhar peso e a fome permanece sob controle. Ainda assim, a massa corporal já começa a aumentar. “Elas ganham peso muito fácil porque o metabolismo diminui bastante, elas têm aproximadamente 60% menos [do gasto energético] do que uma criança [sem a síndrome]”, diz a médica.
A partir dos quatros anos, o apetite aumenta, até que a compulsão se torna grave por volta dos oito anos de idade. "Elas [as crianças com Prader-Wlli] vão em busca de comida o tempo inteiro. Comem, às vezes, comida do lixo, comida congelada, estragada, e roubam comida. O cérebro é focado em conseguir alimento, elas pensam nisso o tempo todo”, afirma Franco.
Hormônio do crescimento
Como seu tônus muscular era muito fraco, Larissa teve alguns atrasos de desenvolvimento: não sentava e demorou para engatinhar. Aos 2 anos de idade, passou a tomar hormônio de crescimento (também chamado de somatotropina). Porém, só começou a andar mesmo com quase 4 anos.
“O hormônio de crescimento ajuda muito, não só na altura, mas na questão da composição corporal”, destaca a endocrinologista Ruth Rocha. “As crianças com Prader-Willi têm muito acúmulo de gordura, e aí, com o hormônio, isso melhora bastante. A força muscular aumenta e elas ficam com um metabolismo melhor”.
Outro benefício do hormônio é na parte cognitiva, principalmente quando a intervenção é feita antes dos 3 anos de idade. Mas o ideal mesmo é que o tratamento comece aos 3 meses de vida, segundo a médica. “Hoje em dia a gente sabe que quanto antes [tomar hormônio] melhor”, ela diz.
Questão psiquiátrica
Em 2020, por conta da pandemia de Covid-19, Larissa parou de tomar o hormônio de crescimento. Ela já estava com 15 anos. Então, a mãe conversou com uma médica, que resolveu suspender a suplementação hormonal.
No ano seguinte, a família se mudou para a Itália. Larissa ganhou muito peso, alcançando 85 kg, e teve piora no seu estado mental, desenvolvendo surtos psicóticos. Isso motivou a família a voltar para o Brasil.
“Existe uma prevalência muito grande, principalmente durante a adolescência, dessas alterações psiquiátricas [em pessoas com Prader-Willi]”, explica a médica Ruth Rocha. “Ansiedade, às vezes déficit de atenção, hiperatividade, surtos psicóticos podem aparecer, principalmente durante o começo da puberdade”.
Os episódios psicóticos e problemas comportamentais são mais frequentes quando a pessoa tem a síndrome por dissomia, segundo a médica. “Quando o cromossomo inteiro do pai não foi passado para a criança, ao invés disso vieram dois cromossomos 15 da mãe, existe o que chamamos de dissomia”, ela explica.
Segundo a especialista, as crianças com Prader-Willi costumam ser teimosas, com um grau elevado de ansiedade. “Podem ter muita variação de humor, são sensíveis a mudanças de rotina, à frustração, apresentam fala repetitiva, com algumas características do autismo”, afirma.
Porém, a síndrome não é o mesmo que o transtorno do espectro autista (TEA): “São crianças bem sociáveis, diferente da criança que tem autismo. São carinhosas, gostam de interagir com animais, com pessoas”, diferencia.
Moradia assistida
Larissa passou por 5 instituições escolares diferentes e só cursou até o sétimo ano do Ensino Fundamental. “Muitas escolas diziam, ‘a gente não é o melhor lugar para ela estar, você tinha que procurar uma escola maior, uma menor”, relata a mãe dela, Patrícia. “Cada uma dava uma desculpa [diferente]”.
Eventualmente, a cuidadora optou por colocar a filha em uma moradia assistida, preocupada que durante sua velhice não pudesse amparar a garota. “Eu estou com 53 anos; estava com 51 na época [em que Larissa foi acolhida], e eu estava pensando que eu não vou durar para sempre”, recorda. “O grande pavor das mães atípicas é morrer e [não saber] quem vai cuidar e se responsabilizar pelos filhos.”
Larissa, atualmente, mora na Associação Morumbi de Assistência Ao Excepcional (Amae), em Itapecirica da Serra (SP). “Minha filha está em um ambiente onde ela tem amigos de verdade. Ela não está isolada lá, ela sai, a gente passeia, faz coisas fora”, diz Patrícia. "Eles próprios [da equipe da associação] passeiam. Ela vive em comunidade".
A mãe descreve a filha como uma jovem feliz e super animada. "Ela adora as atividades que tem lá na moradia, é super participativa, adora piscina, aula de música, de dança e culinária", diz. "Ela gosta muito de conversar, de interagir, de brincar e é super festeira".
A escolha de colocar a filha em uma moradia assistida, no entanto, gerou críticas de parentes, que, a partir de uma visão preconceituosa, acusaram a mãe de "abandono". Patrícia buscou, então, ajuda psicológica. “A minha terapeuta na época me falou uma coisa muito séria. Ela disse: você não deixou de cuidar da sua filha, deixou o cuidado diário, mas você continua cuidando dela”.
“Sou eu que agendo o dentista, levo ela [Larissa] para o médico, para exames, visito ela praticamente toda semana, levo no shopping, faço passeios com ela”, cita. “Então, quer dizer, eu continuo tanto convivendo quanto cuidando dela, só que de um outro jeito, com o apoio de uma equipe que tem qualificação para isso”.
Por meio do Instagram @mundoim.perfeito e da Rede Mães Atípicas, que Patrícia fundou, ela leva conselhos de empreendedorismo para mães de filhos com Prader-Willi e outras condições, como Síndrome de Down e autismo.
A consultora de diversidade e pesquisadora conduziu um estudo em 2023 com 323 mães atípicas brasileiras que estimou que 59% delas pararam de trabalhar para se dedicarem exclusivamente aos filhos. “Conheço mulheres que se suicidaram porque não têm mais esperança nenhuma, sei de casos pavorosos, de gente que se matou, matou o filho e se matou. Porque as pessoas não têm perspectiva, não existe política pública, não existe apoio”, lamenta.
https://revistagalileu.globo.com/saude/noticia/2024/08/sindrome-rara-faz-criancas-terem-fome-24h-por-dia-conheca-os-sintomas.ghtml