Por Gustavo Honório, Rodrigo Rodrigues, Lívia Machado, g1 SP — São Paulo
Voluntário que faz pães para moradores em situação de rua em SP — Foto: Reprodução/TV Globo
Proposta prevê, por exemplo, que pessoas físicas precisarão de duas autorizações da prefeitura para fazer doações. OAB-SP considera proposta inconstitucional. Vereador Rubinho Nunes (União) afirmou que 'suspensão tem por objetivo ampliar o diálogo com a sociedade civil'.
Após repercussão negativa, o vereador que propôs o projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo recuou e disse que vai suspender a tramitação do texto.
Segundo o autor do projeto, o vereador Rubinho Nunes (União), "a suspensão tem por objetivo ampliar o diálogo com a sociedade civil, ONGs e demais associações e buscar o aperfeiçoamento do texto para que a finalidade do projeto seja atendida".
O texto, que estabelece regras tanto para ONGs e entidades quanto para pessoas físicas, foi aprovado em 25 segundos durante sessão na Câmara Municipal.
Esse foi o tempo entre o momento em que o vereador João Jorge (MDB), vice-presidente da Câ-mara, declarou aberta a discussão e o momento em que declarou aprovado o projeto. Confira o diálogo:
• — "Em discussão. Não há oradores inscritos em votação. Os vereadores... [inau-dível]. Está aprovado o projeto do vereador Rubinho Nunes [União]", diz o presi-dente da sessão, o vereador João Jorge (MDB).
• — "Pela ordem, presidente", diz o vereador Senival Moura (PT).
• — "Pela ordem", diz o vereador Celso Gianazzi (PSOL).
• — "Pela ordem segunda. Pela ordem, vereador Senival Moura", diz o vice-presidente.
• — "Presidente, só para registrar voto contrário da bancada de vereadores do PT, conforme combinado anteriormente", afirma Senival.
• — "Registrado. Vereador Celso Gianazzi...", diz João Jorge.
• — "Registrar voto contrário da bancada do PSOL", diz Giannazi.
• — "Registrado. Mesmo assim, aprovado", finaliza João Jorge.
Requisitos impostos pela lei:
Para doar alimentos, as pessoas físicas deverão:
• Limpar toda a área onde será realizada a distribuição dos alimentos e disponibilizar ten-das, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos e "demais ferramentas necessárias à ali-mentação segura e digna, responsabilizando-se posteriormente pela adequada limpeza e asseio do local onde se realizou a ação";
• Autorização da Secretaria Municipal de Subprefeituras;
• Autorização da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS);
• Cadastro de todos os voluntários presentes na ação junto à SMADS.
Além dos requisitos descritos acima, as entidades e ONGs deverão:
• Apresentar a razão social da entidade registrada e reconhecida por órgãos competentes do município;
• Apresentar documento atualizado com informações sobre o quadro administrativo da en-tidade, com nomes e cargos dos membros e as devidas comprovações de identidade;
• Fazer cadastro das pessoas em situação de vulnerabilidade social com informações atuali-zadas;
• Identificar com crachá da entidade os voluntários do momento da entrega do alimento;
• Autenticar em cartório ou incluir atestado de veracidade nas documentações apresenta-das pelas ONGs e entidades.
O texto também estabelece que o local em que os alimentos serão preparados deverão passar por vistoria da Vigilância Sanitária.
A Prefeitura de São Paulo informou que, atualmente, não existe obrigação de TPU (Termo de Permissão de Uso) para entrega de alimentação às pessoas em situação de rua. Disse também que o projeto será analisado pelo prefeito, caso seja aprovado em segunda votação.
OAB diz que projeto é inconstitucional
"Se todos são iguais perante à lei e aos poderes públicos constituídos, não pode o Município se sobrepor às relações humanas e às relações interpessoais. Desta forma, a Câmara não pode, em hipótese alguma, proibir que pessoas doem a outras pessoas, seja alimentos, bens ou afetos", apontou a Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB-SP.
O padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de SP, disse, em entrevista ao g1, que o projeto "é aporofóbico, de punição aos pobres e daqueles que estão a seu serviço'."
'Arbitrariedades sem sentido', dizem ONGs
Ao g1, representantes de ONGs que atuam com pessoas em situação de rua apontaram que exigir listas, documentos e autorizações são "arbitrariedades sem sentido ou base que, com certeza, afastarão voluntários e inibirão o trabalho humanitário realizado hoje pelas ONGs na cidade".
"A proposta encabeçada pelo vereador Rubinho Nunes [União] novamente mostra um profundo desconhecimento dele em relação à realidade da população vulnerável na cidade. Centenas de entidades fazem o trabalho que a prefeitura deveria fazer, mantendo essas pessoas vivas, ali-mentadas e protegidas do frio. São grupos de voluntários. Muitas dessas ONGs são formalizadas, mas muitas não são, justamente por se tratar de projetos formados por cidadãos que resolveram fazer o que o Estado falha em fazer", destacaram Thiago Branco, fundador da ONG Mãos na Massa, e Christian Francis Braga, fundador do Instituto GAS.
"Como ficam ações emergenciais no frio, por exemplo, se precisarmos de autorizações das Sub-prefeituras? As multas de R$ 17 mil para entidades que não possuem fins lucrativos são um dispa-rate à humanidade e ao bom senso, comprovando que o parlamentar só tem o objetivo de impe-dir o socorro humanitário a pessoas que ele, como representante do povo, deveria ter se impor-tado em todo o seu mandato", completaram.
Pai Denisson D’Angiles, fundador do Instituto CEU Estrela Guia, disse estar estarrecido com o projeto de lei.
"Quando alguém com o poder de legislar sobrepõe as suas vontades próprias em vez de coibir a fome, nos preocupa muito. A fome está latente no coração da cidade. Uma pessoa com um pou-quinho de discernimento, com um pouquinho de razão, jamais cercearia este bem-estar, cercearia a vida de uma pessoa".
"Por que, em vez de se coibir ações voluntárias, extremamente amorosas, bondosas, válidas e amparadas pela Constituição, não se propõe ajudar essas instituições cedendo espaço, mecanis-mos para que elas funcionem?", questionou. "São distribuídas cerca de 400 a 600 refeições por dia, tudo isso de maneira gratuita", completou Denisson.
A Ação da Cidadania, uma das maiores ONGs de combate à fome no país, também criticou o projeto: "O político que toma a decisão de restringir o trabalho de organizações sérias e compro-metidas em levar comida e solidariedade à população em situação de vulnerabilidade social está seriamente comprometido em extinguir a existência das 10,6 milhões de pessoas que vivem no estado de São Paulo e hoje não conseguem fazer todas as refeições como deveriam".
"É triste observar que representantes políticos da maior metrópole do país estabeleça, critérios para que a sociedade civil cumpra com um trabalho que deveria ser uma atribuição do poder pú-blico, sob consequência de pagamento de multa de até R$ 17 mil, além de tantas outras barreiras burocráticas com o claro objetivo de desencorajar a atuação de organizações não-governamentais e entidades que distribuem refeições diárias para quem não tem o que comer", destacou a entida-de.
Em nota, Rubinho Nunes (União), autor do projeto, afirmou que "o objetivo do projeto é garantir protocolos de segurança alimentar na distribuição, prestigiando a higiene e o acolhimento das pessoas vulneráveis durante a alimentação". Disse também que "alguns veículos deram uma in-terpretação errada e desvirtuada sobre o projeto".
"O projeto também otimiza a assistência, pois evita desperdício e a venda de marmitas para com-pra de drogas devido à distribuição concentrada, o que prejudica a ajuda a pessoas em regiões mais afastadas da cidade", completou.
Oposição quer barrar projeto
A vereadora Luna Zarattini (PT) disse ao g1 que irá "buscar meios de este retrocesso não acon-tecer na nossa cidade".
"Em vez de o Projeto incentivar as ONGs no combate à fome e à miséria na nossa cidade, estimu-la multas e penalidades através de muitos requisitos meramente burocráticos. O vereador em questão tem histórico de perseguir aqueles e aquelas que tem se indignado com o crescimento da população em situação de rua, que chega a 52 mil pessoas. É um absurdo que, neste cenário de abandono, a grande preocupação seja com as ONGs e não com a fome", pontuou a parlamentar.
A covereadora Silvia Ferraro, do mandato coletivo Bancada Feminista do PSOL, disse que pre-tende obstruir a pauta da Câmara Municipal, caso o projeto siga para segunda votação.
"Este projeto tem o objetivo de impedir a distribuição de alimentos para a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Coloca vários obstáculos irreais e várias burocracias para, na prática, acabar com a distribuição de comida para uma população extremamente vulnerável e famélica".
“O vereador autor do projeto quer matar de fome a população em situação de rua, burocratizando e impedindo na prática, a distribuição de alimentos para uma população extremamente vulnerá-vel!”, completou.
Padre Julio Lancellotti fala ajudar moradores de rua em São Paulo
O que diz a Prefeitura de SP
A Prefeitura de São Paulo divulgou a seguinte nota:
"A Prefeitura de São Paulo informa que o Projeto de Lei segue em discussão na Câmara Municipal de São Paulo e será analisado pelo prefeito caso seja aprovado em segunda votação.
Atualmente, não existe obrigação de TPU (Termo de Permissão de Uso) para entrega de alimenta-ção às pessoas em situação de rua.
A gestão municipal mantém dois programas de Segurança Alimentar que entregam refeições para população vulnerável em todas as regiões da cidade.
No Centro, o programa Rede Cozinha Escola fornece, no mínimo, 400 refeições diárias de segunda a sábado por meio de cinco organizações sociais:
Pelo Programa Rede Cozinha Cidadã são distribuídas 2.400 refeições na região central de segunda a domingo: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/rede_cozinha_cidada/index.php?p=352740".
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/28/apos-ser-aprovado-em-25-segundos-autor-quer-suspender-projeto-com-multa-de-r-17-mil-a-quem-doar-comida-a-moradores-de-rua-em-sp.ghtml