Lesão na mão impediu a cantora de tocar violão e guitarra nos shows.
Lívia MachadoDo G1, em São Paulo
O que a princípio representava uma camisa de força foi o grande responsável pelo experimentalismo presente no DVD ao vivo “Micróbio vivo”, de Adriana Calcanhotto. Sem poder tocar o violão e a guitarra, instrumentos que acompanharam a cantora durante o processo de composição e gravação do CD "Micróbio do samba", lançado em 2011, a solução inicial era cancelar a turnê de seu primeiro trabalho homogênio, em que apresenta apenas canções de samba.
Cancelar os shows internacionais, entretanto, implicaria em não tocar em Portugal, país pelo qual ela não esconde o carinho especial. “Gosto de tudo lá. Das ruas, das cidades, dos poetas, das pessoas. Fiquei incomodada.”
Foi a partir de tal desconforto que Adriana começou a perceber que poderia transformar o que considerava como um “castigo” (a mão e o pulso machucados), em desafio. “Pensei na possibilidade de escolher não ser infeliz e comecei a bolar ideias para algumas sonoridades que eu fiz no disco e não poderia fazer no palco sem o meu violão e a guitarra.”
Abracadabra
As soluções se apresentam no DVD como uma espécie de mesa de mágico. Ao lado do microfone, Adriana tem uma série de materiais que se transformam em instrumentos musicais durante o show. O secador de cabelo é uma das formas de reproduzir o som “sujo” da guitarra, presente no CD.
“O secador substitui os ruídos da guitarra, mas ele também é uma pistola feminina e espana as partituras do Davi (Moraes). Tudo que eu usei começa com uma intenção e termina em outra. São ferramentas cheias de significados, nunca sabemos onde vai dar. E isso foi ficando rico, divertido.”
Além da “arma”, ela recorre a outros objetos do cotidiano grávidos de sentido em cima do palco. A emblemática caixa de fósforo, sempre presente em rodas de samba, somada às xícaras de chá, ao MPC (Media Player Classic), e a "bagulhinhos eletrônicos de nomes estranhos tipo thingamagoop” — como ela define o aparato —, além de algumas gravações, como a de Adriana tocando um piano, ajudaram a compositora a encarar a turnê sem medo de ser (in)feliz.
O resultado é uma cantora à vontade, apesar da ausência da guitarra e do violão, que de fato parece estar livre até para dançar sem muita malemolência. Ela compensa a falta de samba no pé balançando o corpo na maioria das canções que interpreta. No meio da apresentação, reproduz os passos do que batizou de “dança da namorada”, coreografia inspirada em uma senhora que assistiu ao show na Liubliana, cidade Eslovênia.
“Fiquei impressionada com a falta de desenvoltura daquela mulher. Apesar de dura, muito dura dançando, ela estava feliz, curtindo o show de uma forma comovente. Ela não tinha consciência de que estava fora do ritmo. Dançou durante a apresentação inteira, na pista vazia, segurando um copo nas mãos. Achei aquilo muito livre, uma autoestima admirável.”
Maturação
As composições do disco “Micróbio do samba” foram feitas despretensiosamente ao longo de quatro anos. Quando se deu conta, Adriana tinha armazenado o que renderia, pela primeira vez, um álbum de um tema só. “Sempre fui uma compositora híbrida. Busco ao menos um atrito entre dois estilos. Nunca tinha sonhado em gravar um CD só de samba.”
Embora distante de suas metas profissionais, ela afirma que sempre se sentiu contaminada pelo estilo. “Esse disco e o DVD mostram a forte influência do samba na minha carreira.”
Gaúcha, a cantora revela que ouvia as composições de sambistas famosos na barriga de sua mãe. Cresceu impregnada do repertório do conterrêneo Lupicínio Rodrigues, de quem pegou emprestado a expressão “Micróbio do samba” para nomear seu último trabalho. “Ele é um compositor super conhecido em Porto Alegre. Quando comecei a tocar na noite todo mundo interpretava as canções dele, o conhecia. Nunca tinha me dado conta da influência que ele exerceu na minha formação até produzir esse disco. Meu samba é dixavado, milonga, assim como o dele.”
Lupicínio dizia que era preciso ter o "bichinho do samba", reconhecer o “duende” guardião da vertente para poder cantar. “Ele se gabava de ter sido expulso do colégio, e falava que isso era ter o tal micróbio, o gene do malandro. Achei incrível.”
Escolhas
Algumas músicas dessa safra ela compôs para outras intérpretes, como foi o caso de “Beijo sem”, canção feita para Marisa Monte, mas gravada por Teresa Cristina. “Fui fazendo sambas sem querer. A Mart'nália tinha me pedido uma música, e fiz um samba pra ela, mas quem quis foi a Marisa. E o mesmo aconteceu com “Beijo sem”. Isso só reforça minha tese de fazer canções para uma cantora, e a outra querer.”
Além das faixas autorais, Adriana escolheu três sambas de compositores renomados como uma espécie de homenagem e licença poética: “Argumento” (Paulinho da Viola), “Esses moços (Pobres moços)” (Lupcínio Rodrigues) e “Dos prazeres, das canções” (Péricles Cavalcanti).
“Eu achei que estaria mexendo em um vespeiro, que me chatearia com as cobranças, mas isso não aconteceu. Esses compositores alargaram o samba, nos deram contribuições importantes, precisavam estar presentes.”
A turnê do “Micróbio vivo” passou por 26 cidades, em 11 países. No Brasil, Adriana e os músicos Davi Moraes, Alberto Continentino e Domenico Lancellotti gravaram o DVD no Rio de janeiro em outubro de 2011. Voltaram à cidade no final de maio deste ano, e agora se apresentam em São Paulo desta quinta-feira (7) até domingo (10) no Sesc Pinheiros - com ingressos esgotados - e devem seguir a turnê pelo país.
Em julho, Adriana será uma das representates do Brasil no Montreux Jazz Festival, na Suíça. No evento, ela apresentará um repertório exclusivo para a noite, e formará um trio de guitarras com Davi Moraes e Pedro Sá. Será, provavelmente, sua versão mais rock and roll. "É curioso fazer um show com três guitarras. Já voltei a tocar, e eu não resisti. Acho que vai ser ótimo."